O papel do governo em uma sociedade é um dos debates mais passionais que existe. Nas posições mais construtivas, temos um espectro que varia entre posições liberais que aceitam intervenções pontuais em mercados que funcionam mal e posições mais intervencionistas que enxergam no Estado um promotor de desenvolvimento em graus variados.

A política funciona como um espaço de negociação entre visões que podem ser conciliadas, mas muitas vezes se tornam combativamente antagônicas.

É inegável a importância da atuação governamental durante a pandemia. No mundo inteiro, o governo adotou ações para amenizar a queda de renda das famílias com transferências de recursos, ampliar a capacidade dos sistemas hospitalares, repor recursos para estados e municípios administrarem as cidades e evitar a quebradeira das empresas.

A expansão fiscal ainda não se encerrou, pois a crise persiste com a segunda onda. Mesmo com a vacina, há necessidade de recuperar as economias para evitar o erro de retirada prematura dos estímulos, como ocorreu na crise financeira de 2008.

Dessa forma, alguns debates vão na direção de ampliar o potencial de arrecadação dos governos, tanto para manter a proteção social e o suporte fiscal quanto para controlar o crescimento das dívidas públicas.

É comum observar reações negativas em discussões tributárias que ensejam algum aumento de impostos no Brasil, com alegações de que a carga tributária já é elevada e inibe o crescimento econômico. A discussão, contudo, não é acompanhada de números e evidências. A carga tributária brasileira medida pela Receita Federal atingiu 32,7% do PIB em 2018, último ano de divulgação da estatística.

Em relação aos países da OCDE (grupo das nações mais desenvolvidas), com carga tributária média de 34,2% do PIB, o Brasil está em um patamar moderado. Em relação aos países emergentes, a carga tributária brasileira pode ser considerada, de fato, elevada. Alguns exemplos de nações com índices inferiores ao nosso: México (23,7%), Chile (26,3%), Colômbia (22,3%), China (20,1%), Índia (12,5%) e Coreia do Sul (26,8%)[1].

Todos esses números, contudo, demandam interpretação e contexto. Uma breve comparação com o México é oportuna, porque permite colocar algumas questões na perspectiva correta.

O México tem uma arrecadação expressiva de royalties do petróleo, que não é tratado como carga tributária, o que lhe permite moderar na arrecadação de tributos. Além disso, a idade média de aposentadoria dos mexicanos é próxima de 70 anos, e a taxa de reposição média do rendimento é de apenas de 25%[2].

O México não possui um programa de seguro-desemprego abrangente, tampouco um sistema de saúde universal. Pouco serviço público e muita arrecadação com a exploração do petróleo explicam a baixa tributação por lá. No entanto, mesmo com a reduzida carga de impostos, o México segue preso na armadilha do baixo crescimento.

A falta de proteção social e de ações governamentais fez com que a economia mexicana sofresse bastante durante a pandemia. Estima-se que o PIB tenha sofrido queda superior a 10% em 2020, caso similar ao de vários outros países latino-americanos.

No Brasil, a rede de proteção existente amparou a sociedade e sua rápida ampliação impediu que a crise resultasse ainda mais drástica. As projeções atuais apontam que o Brasil deve sofrer uma contração da ordem de 4,5%, quase metade da esperada para toda a América Latina. A rede de proteção social funciona como um estabilizador automático da atividade econômica.

Estudos acadêmicos estimam que o Brasil possui a maior desigualdade de renda do trabalho entre os países da América Latina. Após a atuação governamental por meio dos impostos e das transferências, tornou-se o país com maior redução de desigualdade de renda, situando-se abaixo do Chile, por exemplo. Apesar disso, o Brasil ainda possui uma diferença de renda elevada para os padrões do continente[3].

A ideia de que uma elevada carga tributária é nociva ao crescimento econômico tem um largo lastro de adeptos. Argumenta-se que a redução dos impostos sobre os mais ricos induz respostas positivas na oferta de trabalho dos indivíduos mais escolarizados e com maior dotação de capital, estimulando a produtividade e o crescimento.

Alguns estudos, contudo, refutam essa relação. Pesquisadores da London School of Economics analisaram o efeito da redução dos impostos para os estratos mais ricos da sociedade nas últimas cinco décadas em 18 países da OCDE. Concluíram que não houve nenhum impacto relevante sobre o crescimento econômico e emprego, apenas aumento na desigualdade[4].

Há um longo debate sobre a relação entre desigualdade e crescimento econômico. Defensores da ideia de que a desigualdade é positiva para o crescimento entendem que ela cria estímulos para os indivíduos se aperfeiçoarem e superarem seus limites. Assim, a desigualdade seria um motor do crescimento econômico e utilizar medidas tributárias progressivas poderia ter o efeito contrário ao desejado.

Muitos estudiosos, no entanto, entendem que a desigualdade reflete as barreiras que os indivíduos menos abastados enfrentam para se desenvolver. Nessa interpretação, ela estaria associada a outros fatores que impediriam a mobilidade social. Dessa forma, as possibilidades econômicas são diminutas para um indivíduo que nasceu pobre ascender socialmente.

Em um exaustivo estudo, pesquisadores da OCDE concluíram que a desigualdade de renda é negativamente relacionada com taxas de crescimento econômico[5]. Esse resultado vai ao encontro da evidência empírica que mostra que a mobilidade social é menor em países com maior concentração de riqueza, um fenômeno conhecido entre economistas como “Great Gatsby curve”, uma referência ao clássico livro que retrata a distinção de classes da sociedade norte-americana na década de 1920[6].

No intuito de distribuir os custos econômicos da pandemia de forma mais adequada, é importante buscar formas viáveis e socialmente justas de financiamento das políticas públicas. O maior diferencial da tributação brasileira em relação aos países mais desenvolvidos ocorre na base de renda, lucros e ganhos de capital[7].

As alíquotas do Imposto de Renda para pessoa física apresentam baixa progressividade, e muitas isenções atenuam seu potencial redistributivo, reduzindo sua capacidade de arrecadação e limitando o financiamento de políticas públicas.

A isenção na tributação sobre lucros e dividendos, instituída para estimular investimentos, encorajou o planejamento tributário para os profissionais liberais de renda mais elevada. A evidência empírica indica que a isenção não gerou crescimento econômico, tampouco elevou os investimentos.

Na França, a tributação sobre lucros e dividendos foi majorada em 2013, no bojo de uma reforma que desestimulou a remuneração dos acionistas e elevou a poupança das empresas que usaram os recursos em caixa para ampliar seus investimentos e oferecer financiamentos aos seus clientes[8].

É um exemplo em que o imposto resulta em crescimento econômico, reduz a desigualdade de renda e fornece recursos para os governos ampliarem o acesso aos serviços públicos. Nos EUA, a redução da tributação sobre lucros e dividendos em 2003 também não resultou em nenhum efeito visível sobre o desempenho econômico[9].

No Brasil, a tributação sobre a renda tradicionalmente se concentrou nas empresas, o que vai na direção oposta à tendência mundial. A volta da tributação sobre lucros e dividendos poderia reverter essa tendência e criar condições para a maior concentração de impostos sobre a renda das pessoas físicas, alinhando o modelo brasileiro aos padrões internacionais, com redução da tributação direta sobre as empresas, o que propiciaria um ambiente mais receptivo à absorção de investimentos.

A tributação dos fundos de investimento fechados, em que as famílias mais ricas do país fazem seus investimentos, incide somente no momento do saque ou do término do prazo de duração do fundo. Essa diferenciação de tratamento em relação aos investidores convencionais permite acúmulo de ganhos e resulta em expressivos benefícios fiscais aos seus cotistas.

A nova economia digital também impõe desafios importantes aos sistemas tributários. No passado, para consumir o produto “música”, havia uma transação econômica em torno de um objeto físico. A existência física permitia a tributação em várias etapas de produção do que se consumia. Esse exemplo é generalizável para vários produtos, serviços e atividades econômicas, como propaganda e marketing.

É possível tributar essas transações no momento do pagamento, mas é inegável que esse processo ficou mais complexo, principalmente porque o lucro de muitas operações, atualmente, é apropriado fora do país. Assim, a economia digital tornou a tributação direta mais difícil, devido à concentração de vários mercados nos gigantes da internet que se situam em outras jurisdições[10].

A internacionalização do lucro gerado por essas empresas nas atividades praticadas localmente erodiu a base tributária dos governos e concentrou renda na mão de grandes corporações. Em resposta às necessidades fiscais da pandemia, a Espanha aprovou um imposto de 3% sobre as receitas locais dos gigantes da internet, que ficou conhecido como “Google tax”. O imposto será formalizado se os membros da OCDE chegarem a um acordo para lançar uma taxa digital conjunta.

A introdução de um imposto de carbono também tem potencial relevante de aumento de arrecadação e oferece incentivos para o desenvolvimento sustentável, intensificando o uso de tecnologias limpas. Um estudo recente publicado pelo NBER, centro de excelência em pesquisa econômica nos Estados Unidos, concluiu que a introdução desse imposto teve impacto nulo sobre o nível de emprego e de crescimento nos países europeus, mostrando que nem todo imposto é necessariamente nocivo para um país.

O pesquisador Bráulio Borges, do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), em um artigo para o Observatório de Política Fiscal, mostrou que essa é uma alternativa de baixo custo econômico para tornar a dívida pública brasileira sustentável[11].

A tributação sobre o patrimônio também tem sido revista. Uma comissão foi criada no Reino Unido para estudar a introdução de um imposto sobre fortunas (IF). Os pesquisadores reconheceram o efeito inconveniente do IF ao estimular a fuga de ativos móveis, razão pela qual, para evitar esse risco, recomendaram sua introdução de forma temporária[12].

O Observatório de Política Fiscal publicou um estudo sobre o IF, mostrando que vários países europeus instituíram esse imposto na saída da crise de 2008, mas o extinguiram à medida que restauraram suas condições fiscais. Na América Latina, Argentina e Bolívia criaram suas versões de IF, de forma temporária, no esforço de financiar políticas públicas durante a crise da Covid-19.

Dessa forma, é possível que o IF conviva com outros impostos sobre o patrimônio e a renda em períodos excepcionais, como tem sido prática na experiência internacional. A característica temporária, a reduzida base de arrecadação ao incidir sobre poucas famílias, a complexidade de administração e o elevado contencioso colocam o IF como um instrumento auxiliar de arrecadação.

A progressividade deve ser, portanto, aperfeiçoada de outras formas. No Brasil, as alíquotas do imposto sobre herança são limitadas a 8%. Segundo o Observatório de Política Fiscal, em outros países os números variam de 30% a 80%, dependendo do grau de parentesco, do valor e da forma de herança.

Do ponto de vista conceitual, a herança é uma riqueza que não envolve nenhuma justificativa relacionada à meritocracia, pois não está associada a esforços ou a compensação de riscos incorridos na atividade produtiva. Portanto, a tributação sobre a herança não distorce incentivos econômicos.

Há uma percepção correta de que injustiça tributária existente no país é elevada. No Brasil, não há incidência de IPVA sobre os bens móveis de luxo como lanchas, jatos, helicópteros e iates. Problema similar ocorre no IPTU, pois as alíquotas não são progressivas e existem muitas isenções mal focalizadas. Em todos esses casos, há um relevante potencial de arrecadação.

Existem vários caminhos para tornar a tributação brasileira mais progressiva. Isso envolve temas complexos, que decorrem de mudanças na estrutura produtiva e na agenda econômica e política que estão ocorrendo em todo o mundo, mas parte relevante reflete questões domésticas, tão antigas quanto injustas.

A reforma da tributação indireta em discussão no Congresso, muito importante para elevar a eficiência do sistema, nunca conquistou o eleitor mediano por não incluir a progressividade tributária na sua pauta.

Os nossos problemas possuem solução, mesmo no atual momento de dificuldades fiscais, evidentes para todos. A adoção de medidas tributárias mais progressivas pode contribuir para remover barreiras ao desenvolvimento, criando condições adequadas de financiamento para programas públicos com elevado retorno social, como qualificação profissional, educação, saúde, saneamento e infraestrutura. Não se trata de ignorar o potencial de melhora no gasto público já em debate no país, mas de ser justo com todos.

  • Manoel Pires – Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 21/02/2021.

O autor agradece ao apoio prestado pela Samambaia Filantropias à pesquisa “Distribuição de renda, tributação progressiva e crescimento econômico”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Existem vários dados discrepantes de carga tributárias entre os países. Os dados mencionados referem-se ao estudo da Receita Federal do Brasil: “Carga Tributária no Brasil 2018” e para os demais países referem-se a estimativas próprias e preliminares obtidas de diversas fontes a partir de relatórios dos próprios países, da Heritage Foundation e da OCDE e inclui estimativa de receitas de commodities. Este trabalho encontra-se em desenvolvimento. Os dados de Índia, Coreia do Sul e Colômbia foram revisados.

[2] Ver, https://www.oecd.org/els/public-pensions/PAG2019-country-profile-Mexico.pdf

[3] Hanni, M.; Martner, R.; Podestá, A. (2015). “El potencial redistributivo de la fiscalidad em America Latina”, Revista CEPAL 116, pp. 7-26.

[4] Hope, D. e Limberg, J. (2020). “The economic consequences of major tax cuts for the rich”. Working paper 55. International Inequalities Institute.

[5] Cingano, F. (2014). “Trends in income inequality and its impact on economic growth”. OECD Social, Employment and Migration working papers, no 163.

[6] Krueger, A. (2012). “The rise and consequences of inequality in the United States”. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/krueger_cap_speech_final_remarks.pdf

[7] Ver comparativo apresentado em Receita Federal do Brasil: “Carga Tributária no Brasil 2018”.

[8] Boissel, C. e Matray, A. (2019). “Higher dividend taxes, no problem! Evidence from taxing entrepeneurs in France”. Proceedings of Paris December 2020 Finance Meeting EUROFIDAI – ESSEC.

[9] Yagan, D. (2015). “Capital tax reform and the real economy: The Effects of the 2003 dividend tax cuts”. American Economic Review, 105, (12).

[10] OECD (2014). “Adressing the Tax Challenges of the Digital Economy”.

[11] Metcalf, G. e Stock, J. (2020). The Macroeconomic impact of Europe’s carbon tax. NBER, working paper, 27.488.

[12] Advany, A., Chamberlain, E. e Summers, A. (2020). “A wealth tax for the UK”. Wealth Tax Comission, Final Report. Para ver os demais relatórios acesse: https://www.ukwealth.tax/wealth-in-the-uk

 

Via Observatório Política Fiscal