Por Deonísio Koch

O regime de substituição tributária do ICMS sofreu profundo impacto na sua operacionalização com a decisão do STF, em repercussão geral, no RE 593.849/MG [1] segundo a qual o contribuinte substituído tem direito de ressarcimento do ICMS pago a maior por conta da superavaliação da base de cálculo do fato gerador presumido, em relação à base de cálculo da venda efetiva ao consumidor final.

Para atualizar a memória, essa decisão reformulou o entendimento anterior da mesma corte, [2] que atribuía à base de cálculo do fato gerador presumido, nas suas diversas modalidades previstas no artigo 8º, da Lei Complementar nº 87/96, uma condição de definitividade, uma espécie de ficção jurídica, sendo devido o ICMS sobre o preço da mercadoria fixado pela legislação, tornando irrelevante o valor da venda efetiva no ponto final do ciclo comercial.

Com base na nova decisão, mais coerente tecnicamente com o modelo estrutural de incidência do imposto estadual, sempre que o contribuinte substituído promover a sua venda pelo preço inferior à base de cálculo usada na retenção do imposto na fonte, pelo substituto tributário, terá ele direito ao ressarcimento do valor recolhido a maior por antecipação. Os fundamentos da decisão judicial são usados pelos Estados para justificar também a complementação do recolhimento em caso inverso, quando o preço de venda efetiva for maior que o da base de cálculo fixada em legislação para a retenção na fonte, tema que ainda não foi totalmente pacificado, mas que não é o centro das atenções deste artigo.

O que se pretende colocar em foco nessas reflexões é a possibilidade ou não de notificar o contribuinte substituto ou substituído [3] pela inobservância da base de cálculo fixada pela legislação, considerando a sua condição provisória, já que a composição da base de cálculo definitiva ocorrerá com base no preço praticado na venda ao consumidor final. Ou seja, o ICMS-ST é devido sobre o preço real de venda ao consumidor final, e não sobre o preço fixado em legislação para fins de retenção antecipado, que passa a ser uma espécie de recolhimento por estimativa, com posterior ajuste.

Numa abordagem mais conectada à literalidade normativa, é possível encontrar argumentos que legitimam o lançamento de ofício quando a retenção ocorrer sobre uma base de cálculo menor que a fixada na legislação. Dirão os defensores dessa tese que a decisão judicial irradia os seus efeitos somente no ajustamento de preços no final do ciclo comercial, permitindo o ressarcimento, se for o caso, não produzindo nenhum efeito no tocando à obrigatória observância da base de cálculo do ICMS-ST no momento da retenção na fonte pelo substituto tributário.

Nessa perspectiva, se o substituto tributário fizer a retenção do ICMS-ST sobre uma base de cálculo menor que aquela fixada pela legislação, como por exemplo, o valor sugerido pelo fabricante para venda ao consumidor final, como ocorre com os produtos farmacêuticos, caberá a exigência do valor complementar, via lançamento de ofício, em procedimento de fiscalização, afinal a retenção pelo valor menor caracteriza infração de autoria do substituto tributário, com reflexo na responsabilidade solidária do substituído.

Ocorre, no entanto, que a nova decisão do STF permite o ajustamento de contas no final do ciclo comercial da mercadoria, podendo o contribuinte substituído obter o ressarcimento da retenção a maior, quando a venda efetiva ocorrer pelo preço menor que a base de cálculo usada na retenção na fonte. No entendimento dos Estados, cabe também exigir a complementação na hipótese contrária, em que o preço da venda efetiva for maior que a base de cálculo do fato gerador presumido, embora a decisão tenha se omitido com relação a essa complementação. Portanto, nessa nova sistemática, a retenção antecipada pelo substituto tributário, é uma espécie de estimativa, podendo a base tributária efetiva sofrer ajuste para a exata dimensão de valor no momento da venda efetiva da mercadoria ao consumidor final, para mais ou para menos.

Surge, então, a indagação: como caracterizar a infração pela retenção e recolhimento do ICMS-ST menor que o devido, diante do desconhecimento do preço exato da venda da mercadoria, que é a base tributária efetiva? Além do mais, o Fisco se reserva o direito de exigir o ICMS sobre a base de cálculo complementar, na hipótese em que o valor da venda efetiva for superior à base de cálculo do fato gerador presumido. O parâmetro do “valor devido” não tem mais contornos precisos no momento da retenção na fonte, na medida em que haverá o ajuste da base de cálculo na etapa final do ciclo comercial.

A construção de um modelo exemplificativo deixará a questão mais clara. Suponhamos que o valor da base de cálculo para efeitos de substituição tributária de uma mercadoria seja R$ 1 mil. O substituto tributário fez a retenção sobre R$ 800 e o Fisco cobra, via lançamento de ofício, o ICMS-ST sobre R$ 200, seguindo literalmente a determinação legal. Admitamos que essa mercadoria seja vendida pelo substituído tributário por R$ 800, o mesmo valor que serviu para retenção. Ora, nessa situação, o ICMS-ST exigido no lançamento passa a ser indevido. Mesmo que a infração tipificada no lançamento estivesse caracterizada no momento da abordagem fiscal, posteriormente, com a definição em definitivo da base tributária na venda da mercadoria pelo substituído tributário, o imposto exigido passa a ser indevido. Seguindo a mesma lógica, a multa proporcional exigida também perde a sua base de sustentação.

Nesse ponto da reflexão importa lembrar que o lançamento de ofício, segundo os seus requisitos de validade previstos no artigo 142, do CTN [4], é um ato administrativo que deve ser consumado para produzir efeitos a partir da notificação ao sujeito passivo, de forma definitiva, inclusive com relação à determinação do crédito tributário devido. O montante exigido deve ser definido com precisão; não há lugar para conjecturas ou estimativas de valor. A autoridade lançadora deve zelar pela definição do valor efetivamente devido, que será objeto do lançamento, sem prejuízo na composição do contencioso administrativo ou judicial.

A questão tormentosa se resume da seguinte forma: no momento da abordagem fiscal, a não observância da base de cálculo do ICMS-ST, pelo substituto tributário, caracteriza uma infração à norma tributária, visto que a legislação determina a aplicação dessa base de cálculo. No entanto, essa inobservância pode perder relevância jurídica mais adiante, quando se fizer o ajuste da base de cálculo em consonância com o preço real da venda da mercadoria, se esse preço for menor que a base de cálculo do fato gerador presumido. Diante dessa nova realidade factual decorrente da releitura do STF com relação à base de cálculo do ICMS-ST, os Estados haverão de disciplinar essa matéria, para uma maior segurança jurídica nesta questão pontual.

Concluindo, o regime de substituição tributária do ICMS tem-se revelado extremamente eficaz como modelo de arrecadação e fiscalização, todavia, no aspecto jurídico tem produzido pontos tormentosos na sua aplicação prática, não se alinhando com o arquétipo de incidência do imposto. Uma dessas questões de difícil ajustamento à regra de incidência desse imposto sempre foi a determinação da base de cálculo, cuja fixação adota parâmetros assemelhados com a pauta fiscal, método rechaçado pelo Poder Judiciário [5]. É digno de nota que a nova decisão do STF subverteu as razões que justificariam a implantação do regime de substituição tributária, provocando um movimento nos Estados pela exclusão de mercadorias desse regime tributário. A dificuldade está exatamente no controle dos ressarcimentos e complementações no ajuste da base de cálculo do ICMS-ST.

A nova decisão do STF, centrada na valorização da exatidão na definição da base tributária para a incidência do ICMS-ST, ao mesmo tempo em que removeu um dos focos de controvérsia da sistemática de arrecadação, criou outro problema aqui apontado, para o qual os Estados haverão de ofereceu uma solução, visando a impedir a lavratura de lançamentos questionáveis que alimentarão as discussões nos tribunais administrativos e judiciais na composição das lides tributárias desnecessárias.

[1] Tese fixada pelo RE 593849/MG: 7.1″É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”. (Tema 201).

[2] ADI 1851 Rel. Min Ilmar Galvão, 2002:
“O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua nãorealização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação”.

[3] No caso de substituição tributária, normalmente as leis estaduais estabelecem a responsabilidade solidária entre o substituto e o substituído tributário, com relação ao ICMS-ST.

[4] “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”

[5] O STJ sedimentou entendimento, segundo o qual, a pauta fiscal não é meio idôneo para determinar a base de cálculo do ICMS, editando a Súmula n. 431, com o seguinte enunciado: “É ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal.”

Deonísio Koch é Auditor Fiscal da Receita Estadual de SC aposentado, ex-conselheiro do TAT-SC, especialista em Direito tributário pelo IBET, mestre em Administração pela UDESC-ESAG e professor de Direito Tributário.

Via Conjur