Com base em decisão do STJ, estado quer cobrar devedores considerados contumazes

Cerca de 16 mil empresários no estado de São Paulo correm o risco de serem condenados à detenção se for confirmada a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que criminalizou o não pagamento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

Em agosto, o STJ considerou que Robson Schumacher e Vanderléia Shumacher, proprietários de uma loja de produtos infantis em Santa Catarina, cometeram crime de apropriação indébita ao não transferirem aos cofres públicos o imposto pago pelos clientes no ato da compra.

O STJ negou o pedido de habeas corpus feito pelos comerciantes, que alegavam que não praticaram um crime, como considerou o Tribunal de Justiça, mas mero inadimplemento fiscal (situação em que a punição é menor, administrativa, por meio de multa, juros e correção monetária).

Como crime, a pena por apropriação indébita tributária é de seis meses a dois anos de detenção. Em regra, é cumprida no regime aberto.

Se for réu primário, acaba tendo de pagar uma multa ou fazer serviços comunitários. “Mas fica com uma espada sobre a cabeça”, afirma o criminalista Ricardo Sayeg. Havendo reincidência, pode responder em regime semiaberto.

O novo entendimento do STJ vale para as chamadas operações próprias e declaradas ao fisco. Pode vir a alcançar os devedores de ICMS em todos os estados do país. O caso está no STF (Supremo Tribunal Federal).

“O que se criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar do dinheiro relativo ao imposto”, disse o ministro Reynaldo Soares da Fonseca em seu voto no julgamento no STJ.

Caso a decisão seja confirmada, em tese 166.088 empresários paulistas correrão o risco de serem condenados. Juntos, eles devem R$ 89 bilhões.

O governo paulista, no entanto, pretende ir atrás apenas dos chamados devedores contumazes, cujo número é bem menor: 16 mil, que são responsáveis por uma dívida calculada em R$ 34 bilhões.

Os setores têxtil, de metalurgia e de máquinas e equipamentos estão entre os maiores devedores em São Paulo.

“Não dá para colocar todos os devedores na mesma cesta”, afirma Ana Lúcia Pires, subprocuradora-geral do contencioso tributário fiscal. “O alvo não será o contribuinte que foi atingido pela crise econômica, mas o que efetivamente se financia à custa do Estado.”

A legislação paulista considera devedor contumaz aquele com débitos durante seis períodos de apuração, de forma consecutiva ou não, em um prazo de 12 meses.

A Procuradoria, em parceria com a Secretaria de Estado da Fazenda, pretende fazer uma verificação minuciosa e encaminhar os casos recorrentes ao Ministério Público Estadual.

Na avaliação do governo, o devedor contumaz chegou a essa situação deliberadamente, no intuito de utilizar o valor devido como capital de giro.

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Como pelo entendimento anterior não havia punição criminal, deixava para resolver a situação fiscal lá na frente, muitas vezes recorrendo a programas de parcelamento da dívida.

A criminalização, no entendimento do governo, acaba com esse tipo de estratégia, à medida que essa situação passa a ser equivalente à do contribuinte que recorre a fraude para sonegar imposto.

“Ninguém tem o direito de reter o que não é seu”, afirma a promotora Tatiana Bicudo.

O advogado tributarista Igor Mauler Santiago defende um dos comerciantes condenados criminalmente em Santa Catarina. Ele contesta a decisão do STJ. “Não se pode criminalizar o que não está previsto na lei”, afirma.

O advogado considera também que a decisão, ao criminalizar o devedor da mesma forma que o sonegador, acabará sendo contraproducente.

“Vai jogar no caminho da fraude o sujeito que não tem o dinheiro para pagar naquele momento, mas que estava sendo franco com o fisco, declarando o imposto devido”, diz Santiago.

Preocupada com a decisão, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) pediu e obteve autorização do STF para opinar nos autos do processo. Um estado da Federação também poderá participar.

O advogado Ricardo Sayeg afirma que ninguém pode ser preso por dívida. “Criminalizar o não pagamento de imposto é inconstitucional, além de uma violação aos direitos humanos”, afirma Sayeg.

O criminalista cita o “Pacto de San José da Costa Rica”, assinado pelo Brasil em 1992, pelo qual ninguém deve ser detido por dívidas, a não ser em razão de inadimplemento de obrigação alimentar. “Se não houve fraude, não há crime.”