Integrante da equipe defende que mudança do teto de gastos seja feita via lei complementar

O economista Guilherme Mello, integrante do quarteto que comanda a transição de governo na área econômica (ao lado de André Lara Resende, Persio Arida e Nelson Barbosa), afirma ser um consenso no grupo que a regra do teto de gastos precisará ser modificada e que o país precisará de um novo arcabouço para as contas públicas.

Ele diz que as diferentes sugestões para a reforma da regra apresentadas no debate público até agora –como a do Tesouro Nacional e a dos economistas Arminio Fraga e Monica de Bolle– estão sendo estudadas e serão consideradas nas discussões.

Mello defende que a modificação da regra do teto seja feita por meio de lei complementar, o que demandaria uma mudança via PEC (proposta de emenda à Constituição). Ele não descarta a inclusão de uma autorização desse tipo já na chamada PEC da Transição, que foi apresentada a líderes partidários nesta semana. No entanto, ressalta que ainda não há por parte do grupo uma decisão tomada sobre sugestões à proposta.

Como está a discussão da reformulação do arcabouço fiscal? Temos recebido colaborações de economistas como Felipe Salto, Monica de Bolle, Armínio Fraga. Também de parlamentares, do senador José Serra. O Tesouro também fez uma. Nosso plano é lê-las, analisá-las, discutir entre nós e fazer um diagnóstico do atual arcabouço, mostrar os desafios e dilemas que se colocam, e apresentar uma sugestão. Não precisa ser uma proposta fechada, mas uma sugestão sobre como achamos que deveria ser encaminhado. Mas estamos ainda no momento inicial de receber dados e sugestões.

O grupo de economia foi formado há uma semana, e temos menos de um mês para concluir o diagnóstico. Nós já fizemos três reuniões. Temos uma grande vantagem hoje em dia com uma coisa chamada WhatsApp. Estamos em assembleia permanente.

O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin falou sobre tirar o teto de gastos da Constituição. Essa seria a ideia, e sendo, vocês já poderiam inserir um dispositivo na PEC da Transição para permitir a discussão em lei complementar? Na minha opinião pessoal, seria importante fazer como era com a LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] , com uma lei complementar. Isso é uma questão que terá que ser decidida pelo Parlamento. Não há nenhuma discussão finalizada, no sentido de quais vão ser sugestões do grupo de transição, seja para PEC, seja para o novo arcabouço [fiscal] ou uma reforma tributária. Nada foi finalizado.

No que vocês concordam e no que vocês discordam nessa primeira apresentação que tiveram? Há uma concordância grande, em primeiro lugar, da necessidade de rever o arcabouço fiscal brasileiro. [Ele] perdeu a credibilidade, em alguns aspectos se tornou disfuncional e, portanto, precisa ser revisto para além dessa garantia imediata do pagamento dos programas sociais. Assim como há uma compreensão de que é preciso avançar numa discussão de reforma tributária que melhore a competitividade, que torne o sistema mais justo, mais equânime. Há muita convergência. Agora, o formato da proposta ainda não foi discutido.

Por que não fizeram o pedido de aumento no Orçamento em paralelo com o compromisso de mudar a regra fiscal? É a falta disso que alimenta o debate contínuo sobre estarem quebrando uma regra, que não será a regra no futuro. Neste momento, primeiro é preciso garantir rapidamente um espaço para o pagamento do Bolsa Família, que está sob risco sem a aprovação de uma PEC ou alguma medida legal que permita a ampliação de R$ 600. Número dois, é preciso fazer a recomposição dos programas sociais que estão subfinanciados. Precisa um pouco de investimento público. É um texto que está aberto à discussão dos parlamentares. Isso quer dizer que não haverá discussão de regra? Não. Nós falamos durante toda a campanha que haverá uma rediscussão das regras fiscais. O presidente Lula fala isso. Agora, essa discussão tem que ser feita com o novo Parlamento, porque é uma mudança estrutural, assim como a discussão da reforma tributária. Elas vão ocorrer quando tivermos os ministros nomeados, presidente empossado e novo Parlamento, e serão colocadas em uma mesa de negociações que também incluirá a sociedade. A PEC não tem esse objetivo.

Vocês estão confortáveis com o valor fora do teto? Mesmo que não esteja no corpo da PEC, o valor estimado está sendo um grande motivo de estresse no mercado. Digamos que seja aprovado exatamente o valor hoje em discussão, R$ 198 bilhões. É muito pouco crível que não vai ter nenhuma mudança do lado da tributação, do lado do gasto, nenhuma mudança de regra fiscal, a expectativa de crescimento não vai mudar. É um cenário muitíssimo improvável.

O governo Lula terá, como sempre teve, compromisso com a responsabilidade fiscal. Mas esse compromisso não vai ser às custas dos mais pobres, da responsabilidade social. Essa PEC é uma primeira medida, exigida pela herança que nos legou o atual governo. Durante a eleição, o próprio Bolsonaro disse que, se eleito, ia mudar a regra fiscal e mudar o Orçamento que ele mesmo enviou.

Outra polêmica é o prazo de validade da exceção ao teto, um ano ou quatro anos. Ao não vincular o prazo, você está proclamando também um princípio de não vincular o pagamento do benefício social a negociações de natureza política. Se você falar ‘é só para um ano’, no fundo recoloca um cenário de incerteza. Valeria só para 2023, e, caso não se aprove um novo arcabouço fiscal até a metade do ano, a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e a LOA [Lei Orçamentária Anual] vão com o teto, ou seja, mais uma vez terá uma insegurança sobre o pagamento do benefício social. O ideal é ter um período mais longo, exatamente para respeitar o princípio com que qualquer pessoa razoável deveria concordar: os recursos destinados para garantia de renda e cidadania das pessoas mais vulneráveis não podem estar vinculados a incertezas legislativas. É um princípio que deveria ser preservado na negociação parlamentar.

Foi dito que o grupo de economia na transição foi escanteado, excluído da discussão da PEC. É isso mesmo? Não, não há nenhum tipo de cerceamento ou escanteamento. A PEC começou a ser discutida e formulada antes da formação do grupo de transição. A partir desse momento, ela tomou muito uma dinâmica de conversas e negociações no Parlamento. O que nós, na primeira reunião, já falamos? Vamos pedir informações para saber o que está sendo discutido. Na nossa segunda reunião, recebemos um primeiro conjunto de informações. E agora que nós tivemos acesso à versão definitiva da PEC, combinamos de fazer uma análise e, se tivermos alguma sugestão, vamos comunicá-las e, eventualmente, que se leve para o presidente [eleito] Lula. Não é que houve um escanteamento. Os tempos e funções são diferentes. Cada um estava fazendo seu trabalho. A função do grupo técnico de transição é realizar um diagnóstico da situação do Orçamento, mapear desafios de curto prazo, e construir sugestões.

Houve um movimento coordenado de Alckmin e Mercadante em sinalizar tanto para uma revisão de despesas quanto para a revisão de desonerações. Vocês já têm um foco nessas frentes? Mercadante disse que ‘teremos belas surpresas nessa área’, quais seriam? O que não falta a nós são pessoas, pesquisadores, especialistas discutindo o tema da tributação. Estão ajudando a construir ideias, propostas. Não é só gente de esquerda, não é só a gente de direita, não é só do setor público. E tenho convicção também que nós vamos ter surpresas boas, bem formuladas, consistentes, para reformular o arcabouço fiscal e o arcabouço tributário brasileiro, de forma a recuperar a credibilidade, a previsibilidade, a transparência, e também a capacidade de crescimento, a competitividade, melhorar a nossa distribuição de renda.

Sobre a reforma tributária, há uma análise dentro do grupo de aproveitar a PEC 45 ou a PEC 110, que já estão tramitando? Nós ainda não chegamos, para ser bastante sincero, numa discussão de propostas de reforma tributária. Inicialmente, estamos colocando o tema da organização do grupo, da metodologia de trabalho e também da questão dos gastos, da PEC, do debate de arcabouço fiscal. Mas, por exemplo, a ideia de se criar um IVA [Imposto sobre Valor Agregado] é bastante difundida. A importância de simplificar a estrutura dos tributos indiretos, de reduzir a regressividade desses tributos, de combater a guerra fiscal. Tudo isso é acordo. O formato a gente vai discutir.

Qual é mais urgente dentro desse plano de voo, a reforma tributária sobre o consumo ou sobre a renda? Ou dá para tocar as duas juntas? Como a gente não discutiu isso, seria uma resposta pessoal, não do grupo. Mas acho que é importante discutir em paralelo, construir uma reforma do sistema. Se vai aprovar tudo junto, se vai separado, mas que a formulação seja feita em conjunto, que é o que viabiliza mudar o atual balanço tributário brasileiro, muito pesado e que penaliza os mais pobres.

A desoneração dos combustíveis, a um custo de mais de R$ 50 bilhões, está incluída no Orçamento, a lei que garante sua continuidade não existe, a data para acabar é 31 de dezembro de 2022. O que vocês vão fazer? Não é prudente nenhum tipo de choque no primeiro momento. Até porque a dinâmica dos preços dos combustíveis ainda é um pouco instável. Como nós falávamos desde o início, assim que acabasse a eleição, os preços voltariam a subir, e voltaram. Acredito que num primeiro momento vai ter que avaliar qual é o cenário de preços e eventualmente manter [a desoneração], e aí ir reavaliando, ver quais são as melhores alternativas.

Já tivemos dois dias de reações muito fortes, não só da Bolsa ou do dólar, mas de interlocutores com críticas muito duras às falas do Lula. Como o sr. viu isso? O presidente foi eleito para falar e para se comunicar com o povo brasileiro. Acho que há uma interpretação equivocada. O que ele disse é que não é possível só falar de responsabilidade fiscal e esquecer a social. As duas coisas se comunicam. O que ele está ressaltando é esse duplo compromisso. Se você tenta conquistar essa responsabilidade fiscal a despeito da responsabilidade social, você não consegue alcançar e ainda tem graves problemas sociais.

O mercado é um espaço de percepções muito afloradas e muito rápidas. Tenho certeza que qualquer um que leia as declarações do presidente [eleito] Lula, não só as mais recentes, mas o conjunto histórico, entende claramente o que está em jogo. Eu acho que essas coisas passam, uma hora o mercado fica mais desanimado, em outra mais animado.

A preocupação do governo é viabilizar o caminho para implementar o programa que foi eleito: coadunar responsabilidade fiscal com a social, incluindo os pobres no Orçamento, fazendo os muito ricos pagarem o Imposto de Renda que hoje não pagam e construindo políticas públicas capazes de retomar o desenvolvimento. Nesse mesmo caminho, vamos ter declarações, um cara vai gostar, outro não vai gostar, mas importante é conseguir avançar.

Via Folha de São Paulo