Discutida desde meados da década de 1990, e muitas vezes abafada pelas complexidades de uma legislação dúbia, a Lei Kandir voltou a protagonizar as disputas políticas do país neste ano. Em 23 anos de vigência, o texto que isentou empresas de pagar ICMS sobre importação de produtos primários causou um rombo de mais de R$ 600 bilhões aos cofres dos estados.

Agora, diante da grave crise fiscal que diversas unidades da federação atravessam – incluindo Minas, que parcelou o 13º salário do funcionalismo público em 11 vezes –, governadores pressionam pela revisão da Lei Kandir no Congresso Nacional, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) dá um ultimato à União para ressarcir as bilionárias perdas estaduais.

Criada em 1996 com aprovação maciça do Congresso, a Lei Kandir nasceu em um contexto de exaltação do Plano Real. A ideia era fortalecer a moeda nacional e estimular a competição dos produtos brasileiros no exterior, ao desonerar o ICMS de produtos primários. Em contrapartida, a União deveria ressarcir os estados anualmente. Apesar disso, os pagamentos nunca foram regulares. Em 2004, a Lei Complementar 115 criou um divisor de águas na Lei Kandir, ao eximir a União de realizar repasses fixos e obrigar os governadores a fazerem acordos particulares com o governo federal.

Neste ano, em meio ao sufoco financeiro enfrentado pela maioria dos estados, ao menos 12 governadores organizaram uma espécie de mutirão para convencer a União a resolver o imbróglio, em uma dura batalha entre chefes dos Executivos estaduais e o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Dos R$ 637 bilhões estimados em perdas dos 27 estados e Distrito Federal por causa da Lei Kandir, Minas lidera o ranking dos que mais têm a receber: 21% dessa fatia, o equivalente a R$ 135 bilhões pelo ICMS que deixou de entrar no cofre desde 1996. Se houver o pagamento, o Estado, que tem dívida ativa de R$ 88 bilhões com a União e um déficit estimado para este ano de R$ 30 bilhões, passará de devedor a credor.

Mas o que seria uma solução para os cofres públicos estaduais ainda é visto como entrave para o governo federal. Em 2018, a União repassou apenas R$ 1,9 bilhão para todos os estados — uma cifra 51,3% menor do que em 2017, quando foram pagos R$ 3,9 bilhões aos governos estaduais.

“É uma sinuca de bico, porque se a União fizer os pagamentos todos de uma vez, vai sofrer com uma política fiscal duríssima. Ou seja, o governo federal não aguenta isso sozinho. A solução, a meu ver, passa por um ressarcimento parcelado, ao menos, com um valor fixo por ano”, analisa o economista especialista em contas públicas Eduardo Coutinho, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Após o STF determinar, em 2016, o período de um ano para a União apresentar um plano de ressarcimento aos estados, o governo federal decidiu agir, logo após o prazo expirar.

Em 12 de fevereiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou um relatório técnico no qual afirma que a União não tem obrigação de realizar repasses de compensação sobre a Lei Kandir. Pouco depois, o ministro do STF Gilmar Mendes colocou panos quentes ao prorrogar por mais um ano o prazo para a realização dos depósitos.

Em resposta, parlamentares, influenciados pelos governadores, decidiram intensificar a pressão. O senador Antonio Anastasia (PSDB) é relator do PL 511/2018, que obriga a União a repassar R$ 39 bilhões por ano aos 27 Estados mais o Distrito Federal. Depois de passar pelo Senado, o PL retornou à Câmara, onde tramitava em clima morno. Mas o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), provocou o governo federal ao afirmar que vai colocar a proposta na pauta até o fim de março, após a publicação do TCU.

“É uma situação insustentável. E tanto a Câmara como o Senado se mobilizaram para agilizar uma legislação que vai garantir o direito dos estados. A União tem que dialogar”, disse o senador tucano.

O deputado federal Rogério Correia (PT) avalia que é necessário a União realizar um cálculo próprio dos valores devidos.

“O governo federal contesta os valores, então, deve apresentar a conta. O que não pode é não pagar os estados, manter desse jeito. São mais de 20 partidos unidos para aprovar essa lei”, diz o petista.

Parlamentares ameaçam travar reforma da Previdência

Com ânimos acirrados entre governos estaduais e a União, parlamentares no Congresso Nacional ameaçam travar a discussão da reforma da Previdência, caso o governo federal não apresente um plano para ressarcir os estados pelas perdas acarretadas pela Lei Kandir.

Com a expectativa do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de votar a reforma da Previdência até julho deste ano, muitas bancadas têm se organizado para barganhar com o governo federal. O deputado federal Rogério Corrêa (PT) avalia que pelo menos 20 partidos tendem a fechar um acordo para atrasar a reforma da Previdência, caso a União não apresente uma proposta para ressarcir os estados.

“O que nós queremos é um acordo, uma posição mais firme do governo federal. Há muitos anos a Lei Kandir causa perdas bilionárias e Minas é o Estado mais prejudicado porque sobrevive basicamente do minério. Estamos unindo os deputados para fazer essa pressão. Se o governo quer aprovar a Previdência, que ajude os estados a, pelo menos, começar a receber a compensação”, disse o petista.

Na mesma linha, o deputado federal Leo Portela (PR) avalia que pelo menos o Projeto de Lei 511/2018, que obriga a União a repassar anualmente R$ 39 bilhões aos Estados e ao Distrito Federal, deve ser avaliado no Congresso.

“É uma proposta que fixa um valor, pelo menos. E não deixa cada Estado à mercê de uma negociação individual para tentar receber os repasses. A União tem capacidade de arcar com isso, com planejamento”, diz Portela.

Em Minas, deputados estaduais liderados por Sávio Souza Cruz (MDB) também pretendem fazer pressão para a revisão da Lei Kandir. “Estamos avaliando organizar um movimento que possa ir até Brasília para mostrar ao governo federal que essa questão compete a muitos atores regionais. É preciso mudar a Lei Kandir”, disse o emedebista.

Fonte: Jornal Hoje em Dia – Via Fenafisco