Cenário de incerteza compromete a segurança jurídica dos estados e também dos contribuintes

A demora no julgamento das três ações no Supremo Tribunal Federal (STF) que discutem o início da cobrança do diferencial de alíquota (difal) de ICMS acendeu um alerta sobre a real possibilidade de os contribuintes conseguirem restituir valores pagos indevidamente caso o tributo possa ser exigido apenas a partir de 2023.

Não bastasse o longo período que os estados geralmente demoram para fazer as restituições, tributaristas ouvidos pelo JOTA afirmam que, muito provavelmente, haverá uma nova disputa envolvendo a necessidade de as empresas provarem que não repassaram o custo do difal de ICMS ao consumidor ou de obterem destes autorização expressa para receber os valores de volta.

Para os especialistas, como o tema é inédito e não representa uma mudança jurisprudencial, é pouco provável que o STF module os efeitos da decisão. Uma modulação permitiria, por exemplo, que os estados não devolvessem os valores já pagos pelos contribuintes, mesmo que indevidamente.

Entenda o caso

O tema é objeto das ADIs 7066, 7070 e 7078, cujo julgamento foi suspenso no dia 11 de novembro por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Não há data para o caso ser retomado. O difal de ICMS discutido nas ações é cobrado em operações envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte do imposto em outro estado – o que é comum, por exemplo, no comércio eletrônico.

Nas ações, o STF discute se a Lei Complementar 190/22, que regulamentou a cobrança do difal de ICMS, deve observar as anterioridades nonagesimal e anual para começar a produzir efeitos. Antes da suspensão, o STF formou um placar de 5X2 para definir que a lei deve respeitar as duas anterioridades. Na prática, como a LC 190/22 foi publicada em 5 de janeiro de 2022, isso significa que a cobrança seria válida apenas a partir de 2023.

Caso essa posição prevaleça, em tese, os contribuintes poderão pedir aos estados a restituição dos valores pagos ao longo de 2022 a título de difal de ICMS. Para tributaristas, no entanto, o problema é que a demora no julgamento poderá dificultar ou até mesmo impedir a devolução dos valores. Isso porque, no caso de tributos cujo encargo é transferido a terceiro, é comum que o fisco exija das empresas (contribuintes de direito) prova de que o custo não tenha sido repassado aos consumidores (contribuinte de fato) ou tenha uma autorização expressa destes para receber os valores.

Essa regra consta do artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN). Segundo esse dispositivo, “a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.

O advogado tributarista Erich Endrillo Santos Simas, sócio do escritório Allemand, Endrillo e Pereira Advogados Associados, explica que o objetivo do artigo 166 do CTN é evitar a restituição a quem não arcou com o ônus do tributo. Para ele, porém, essa prova é muito difícil. Um dos motivos é que a presunção é que as empresas incluíram o valor do tributo na formação dos preços dos bens e serviços. Outro é que é quase impossível conseguir autorização de milhares de consumidores para pedir a restituição em nome deles.

“Há três perspectivas: quem pagou o tributo ao longo de 2022; quem não pagou, seja porque obteve liminar seja porque decidiu não pagar; e quem realizou depósito judicial. Muito provavelmente, no caso de quem pagou, a Fazenda vai pedir a prova do não repasse”, afirma Endrillo.

Discute-se ainda a possibilidade de o STF modular os efeitos de uma possível decisão favorável aos contribuintes. A modulação poderia desobrigar, por exemplo, o fisco de restituir valores já pagos pelos contribuintes. Para Endrillo, porém, é pouco provável que isso ocorra, uma vez que “a discussão é inédita e não representa mudança jurisprudencial”.

Nos termos do artigo 927, parágrafo terceiro, do Código de Processo Civil, a “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos” é hipótese que autoriza a modulação de efeitos de uma decisão.

Devolução pode ser ”projeto intergeracional”, diz advogado

O advogado Paulo Coimbra, professor de direito tributário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e sócio do escritório Coimbra, Chaves & Batista Advogados, avalia que o cenário é de insegurança tanto para estados quanto para contribuintes. De um lado, alguns estados se anteciparam e decidiram adiar a cobrança pelo pelos até abril de 2022 e não sabem se precisarão restituir. De outro, os contribuintes não sabem qual a melhor decisão a ser tomada.

“O problema maior é a extensão da incerteza, o que compromete a segurança jurídica para os dois lados. É ruim para os estados, pois alguns decidiram adiar a cobrança e outros não, e também para os contribuintes. Muitas empresas foram obrigadas a pagar e, até entre as que conseguiram liminar, há relatos das que enfrentaram barreiras na fiscalização e realizaram o pagamento para as mercadorias serem liberadas”, afirma Coimbra.

Na avaliação do especialista, mesmo nos casos em que a restituição for autorizada, os contribuintes podem ser obrigados a aguardar anos para receber os valores de volta. “Com a situação fiscal cada vez pior, há casos em que os estados simplesmente não fazem a restituição. Ou, ainda, os contribuintes esperam em uma longa fila para receber o pagamento por meio de precatórios. A via do precatório virou uma via-crúcis mesmo. Então, para os estados, o pagamento virou um projeto intergeracional”, diz.

Depósito judicial

O tributarista Igor Mauler Santiago, do escritório Mauler Advogados, ressalta o cenário de incerteza. “Se for reconhecida a inconstitucionalidade do difal e superada a barreira do artigo 166 do CTN, ainda será preciso verificar se o estado possui uma lei que autorize a compensação tributária. Caso não tenha, a restituição terá de se dar por meio de precatórios, de credibilidade cada vez menor”, diz.

Mauler observa que pode haver uma exceção à necessidade de prova de não repasse no caso de empresas que não estão recolhendo o tributo, com ou sem liminar, ou que estão realizando depósito judicial. No primeiro caso, não há o que restituir. No segundo, embora possa haver alguma polêmica, o direito ao levantamento dos valores depositados é a solução correta, defende o advogado.

No julgamento do REsp 1377781/MG, em 2014, por exemplo, a 1ª Turma do STJ afastou a necessidade de aplicação do artigo 166 do CTN em caso de depósito judicial. Ainda assim, Mauler pondera que pode haver discussão sobre o fato de as empresas, mesmo não recolhendo efetivamente o tributo aos cofres públicos, terem cobrado o valor dos consumidores.

 

Via JOTA