Ao julgar o Tema 490 da repercussão geral, o STF validou o artigo 8º, inciso I, da Lei Complementar 24/75, fixando a tese de que “o estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), não viola o princípio constitucional da não cumulatividade” (RE 628.075/RS, relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes, DJe 01.10.2020).

O acórdão não tratou, contudo, do artigo 15 do diploma, segundo o qual “o disposto nesta Lei não se aplica às indústrias instaladas ou que vierem a instalar-se na Zona Franca de Manaus, sendo vedado às demais Unidades da Federação determinar a exclusão de incentivo fiscal, prêmio ou estímulo concedido pelo Estado do Amazonas”. Ou seja: a teor desse dispositivo, a concessão de incentivos de ICMS às indústrias situadas na ZFM independe de convênio autorizativo, podendo dar-se de forma unilateral pelo Estado do Amazonas, vedado às demais unidades federadas determinar o estorno dos créditos correspondentes.

Como é óbvio, a convalidação de um artigo de lei não acarreta a nulidade de outro artigo do mesmo diploma. A presunção, antes, milita em favor da constitucionalidade de todos. Cientes disso, mas tentando obviar a aplicação do artigo 15, alguns estados têm predicado a sua não recepção pela Constituição de 1988, aduzindo que esta (i) condiciona o creditamento de ICMS à respectiva incidência na etapa anterior (artigo 155, parágrafo 2º, inciso I) e (ii) exige prévio convênio para a concessão de qualquer benefício quanto ao imposto (artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “g”).

Como se sabe, o juízo de não recepção pressupõe diferença substancial entre os dispositivos da antiga e da nova Constituição aplicáveis à matéria. E a verdade é que os comandos relevantes da Emenda Constitucional 1/69 (em vigor quando da edição da Lei Complementar 24/75) eram virtualmente idênticos aos atuais: não cumulatividade, permitindo a dedução do imposto cobrado nas operações anteriores (artigo 23, inciso II), e exigência de convênio para benefícios de ICM (artigo 23, parágrafo 2º). Onde a diferença que justificaria a não recepção?

Muito pelo contrário, a Constituição de 1988 confere à ZFM um status especial no que toca à não cumulatividade. Como anotou a Ministra Rosa Weber no voto condutor do RE-RG 592.891/SP (Pleno, DJe 19.09.2019) – que garantiu créditos de IPI ao adquirente de insumos oriundos daquela área, mesmo sendo estes isentos – “subordinar o regime especial de isenção instituído pela norma de estatura constitucional preservadora da Zona Franca de Manaus à regra de creditamento do art. 153, § 3º, II, da CF, que, de fato, pressupõe cobrança anterior, vai, na minha compreensão, contra o sentido expresso da Constituição, e esta é que há de ser reverenciada, nos seus arts. arts. 3º, III, e 43, § 2º, III, e, no art. 40, caput, do ADCT”.

Ou seja: embora não haja IPI nas vendas oriundas da ZFM, a Constituição garante ao adquirente o direito aos créditos respectivos. Isso reforça a conclusão de que regra legal expressa em relação ao ICMS (o artigo 15 da Lei Complementar 24/75) foi por ela recepcionada, e não revogada.

Nem se invoque o artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, alínea “a”, da Constituição de 1988, segundo o qual “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes”. A restrição – inexistente na redação primitiva da EC 1/69, a qual admitia o creditamento integral mesmo em face de isenção, e que foi nela inserida pela EC 23/83[1] – tampouco interfere com a validade do art. 15 da lei complementar. Com efeito, este constitui exatamente a “determinação em contrário da legislação” autorizada no inciso II (seja da CF/88, seja da EC nº 1/69, na redação da EC nº 23/83), justificando a manutenção dos créditos na hipótese que disciplina (produtos industrializados oriundos da ZFM).

A demonstração acima é mesmo despicienda face ao artigo 34, parágrafo 8º, do ADCT, que afirma expressamente a recepção da Lei Complementar 24/75, fulminando de modo incontrastável a tese fazendária: “se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, ‘b’, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria”. Tal recepção é reiteradamente atestada pelo STF, como se vê dos julgados a seguir (nenhum deles relativo a leis amazonenses, note-se):

“(…) O pacto federativo reclama, para a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, a prévia deliberação dos Estados-membros para a concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, na forma prevista no artigo 155, § 2º, XII, g, da Constituição e como disciplinado pela Lei Complementar 24/75, recepcionada pela atual ordem constitucional. (…)” (Pleno, ADI 5.467/MA, relator ministro Luiz Fux, DJe 16.09.2019)

“(…) Concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, por Estado-membro ao arrepio da norma inscrita no art. 155, § 2º, inciso XII, alínea g, porque não observada a Lei Complementar 24/75, recebida pela CF/88, e sem a celebração de convênio: inconstitucionalidade.” (Pleno, ADI 1.179/SP, relator ministro Carlos Velloso, DJ 12.12.2002)

“(…) O interesse dos Estados mostrou-se conducente à reserva a lei complementar da disciplina da matéria, e esta cogita da necessidade de convenio – Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, recepcionada pela Carta de 1988 – artigo 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (…)” (Pleno, ADI 902-MC/SP, relator ministro Marco Aurélio, DJ 22.04.94)

Em conclusão, a tese firmada no Tema 490 da repercussão geral não se aplica aos benefícios unilateralmente concedidos pelo Estado do Amazonas às indústrias situadas na ZFM, cujos clientes continuam a gozar de créditos equivalentes ao ICMS que teria incidido, não fosse a isenção.

[1] Que deu a seguinte redação ao inciso II do artigo 23 da EC 1/69:

“Art. 23, II – operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes.”

 

Via Conjur