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Charles Alcântara. FOTO: DIVULGAÇÃO

Bruno Dantas, ministro do TCU (Tribunal de Contas da União), acusa Receita Federal de tentativa de constrangimento, porque foi intimado pelo órgão a comprovar despesas médicas. Gilmar Mendes, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), acusa servidores da Receita Federal de agirem como “pistoleiros”, em razão da seleção de sua esposa no rol de contribuintes a serem fiscalizados.

Jair Bolsonaro, presidente da República, acusa Receita Federal de perseguir a sua família, em face de ação fiscal no comércio de um dos seus irmãos, no interior de São Paulo. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, diz que a Receita Federal é muito poderosa e precisa ser reestruturada.

Em entrevista recente, Maia declarou que “(…) essa estrutura que a Receita conseguiu construir ao longo dos anos, que ninguém consegue nem entrar na Receita, que aquilo ali é inviolável. O secretário da Receita me disse: uma pessoa hoje não consegue nomear uma secretária que não seja funcionária da Receita Federal, então a Receita acabou ficando com muitos poderes e com muita distorção de poder”.

Em manifestação que aludia ao afastamento de dois Auditores Fiscais da RFB e à suspensão da fiscalização tributária realizada sobre mais de uma centena de contribuintes, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) ressaltava o princípio constitucional da igualdade, que é da gênese das sociedades democráticas. “Ninguém, absolutamente ninguém, nem mesmo as mais graduadas autoridades da República, está acima de qualquer suspeita, tampouco a salvo do alcance da legislação”, dizia a nota da Fenafisco.

As Administrações Tributárias são fundamentais ao Estado Democrático de Direito e essenciais ao funcionamento e à existência de todas as demais Instituições e funções públicas. É preciso, sim, coibir os abusos e ilegalidades cometidos por servidores e autoridades, que se verificam em todos os poderes da República, sem exceção.

É preciso aprimorar e reforçar o controle social sobre as Instituições Públicas, porque democracia sem controle social ativo não passa de democracia de fachada. O que não é preciso, nem aceitável, é atacar a integridade da Receita Federal do Brasil, como fazem várias autoridades, simultânea e sistematicamente.

Há leis para responsabilizar, administrativa, civil e penalmente, ilícitos ou abusos cometidos por qualquer agente público, seja da Receita Federal, do Ministério Público, do Judiciário ou do Legislativo. Mas o que se vê nada tem a ver com o interesse legítimo de investigar, apurar e responsabilizar agentes públicos por supostos ilícitos ou abusos.

Vê-se, isto sim, uma operação direcionada e orquestrada para desacreditar e desmantelar a Receita Federal do Brasil. Vê-se, isto sim, a instrumentalização de casos isolados, ainda sob apuração, para manter longe do alcance da fiscalização tributária um grupo seleto de figuras públicas, autoridades e celebridades.

Não se comprovou, ao menos ainda, qualquer desvio ou desrespeito ao princípio da impessoalidade no âmbito da Receita Federal do Brasil, motivo pelo qual não se justifica esse bombardeio contra a Instituição e seus servidores, salvo se para criar um ambiente propício ao desmonte, sonho de consumo dos sonegadores.

Se da apuração ficar comprovado que a Receita Federal perseguiu ou protegeu determinado contribuinte ou grupo de contribuintes, resta, sem sombra de dúvida, punir os responsáveis, inclusive e principalmente os eventuais ordenadores (mandantes) da ilicitude.

O que não se admite é essa tentativa de criminalizar a Receita Federal, de modo a dar azo à coexistência de dois grupos de contribuintes, conforme alertado pela Fenafisco: os fiscalizáveis e os infiscalizáveis.

Sintomático da existência de grupos distintos de contribuintes, uns mais e outros menos sujeitos às leis tributárias, foi o encontro, em abril deste ano, do presidente da República e do ministro da Economia com o empresário Neymar da Silva Santos, pai do jogador Neymar, para tratar de processo tributário em fase de julgamento no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), em que o jogador figurava (ou figura) no polo passivo, conforme noticiado pela imprensa. Nesse caso, nada se questionou sobre a quebra de impessoalidade, o que denota que a pessoalidade por parte das Instituições Públicas é não apenas consentida, como incentivada e até mesmo aplaudida, quando opera em favor dos infiscalizáveis.

Aquilo que o presidente da Câmara dos Deputados vê como falha ou vício da Receita Federal, na verdade é uma das principais virtudes das Instituições Públicas no contexto de um regime republicano; qual seja: o aproveitamento do pessoal técnico concursado para o exercício das funções públicas. Aliás, se houve – se é que houve – ofensa ao princípio da impessoalidade da RFB nos casos apontados pelo presidente da República, pelo ministro do STF e pelo ministro do TCU, a ofensa só pode ter ocorrido justamente pela interferência política numa atividade que é plena e estritamente vinculada à Lei.

Ao contrário do que aponta Rodrigo Maia, é de menos ingerência do poder político e econômico que precisa a RFB, sob pena de se transformar em instrumento para perseguir adversários e proteger aliados.

Engana, ou está enganado, quem propõe supostamente despolitizar o Fisco, politizando-o ainda mais. A escorreita observância dos princípios da impessoalidade, da legalidade, da moralidade e da probidade não se realizará senão pelo reforço da índole pública do Fisco.

*Por Charles Alcântara, auditor fiscal de Receitas do Estado do Pará e presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco)

 

Artigo publicado no site Estadão em 14 de agosto de 2019