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Por Por George André Palermo Santoro – Secretário de Fazenda do estado de Alagoas

Se Nelson Rodrigues ainda fosse vivo, certamente evocaria o seu famoso personagem, o Sobrenatural de Almeida, como artífice das inacreditáveis mudanças em curso na legislação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

O capítulo mais recente da epopeia entre União e estados em torno da arrecadação de ICMS sobre os combustíveis foi escrito nesta segunda-feira (18/7/2022). O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o conflito de versões acerca do impacto das mudanças na cobrança do imposto seja resolvido na base da planilha. Isto é, uma comissão especial formada por representantes de todos os lados deverá estudar cada cifra entre 2 de agosto e 4 de novembro deste ano.

Técnicos do Tesouro Nacional, do Tribunal de Contas da União e um juiz mediador se debruçarão sobre os números, além de todos os demais envolvidos, que indicarão seus representantes para a comissão. Uma auditoria especial poderá ser convocada para provar, A + B, qual é exatamente o tamanho do rombo em cada Estado em função das Leis Complementares 192 e 194 (ambas de 2022), que determinaram alíquota fixa e única sobre o volume comercializado de combustíveis em todos os Estados, entre outras mudanças.

A LC 192 autorizava que convênio firmado entre as unidades federadas tratasse de alíquotas do ICMS e da concessão de benefício fiscal. Assim, foi editado o Convenio n° 16/2022, questionado judicialmente pela Advocacia Geral da União contra o presidente do Confaz, por meio da ADI 7164.

O ministro André Mendonça suspendeu o convênio, argumentando que ele era incoerente com a Lei 192/22, à medida que indicava carga tributária diferente. Daí em diante, o imbróglio entre Estados e União se acentuou. O Convênio foi revogado pelo Confaz. Os Estados então apresentaram uma contraproposta que foi prontamente recusada pelos representantes da União, que sequer ofereceram alternativas. Foi quando Mendonça concluiu que qualquer mediação entre as partes seria improvável. E concedeu nova liminar que fixou a mesma base de cálculo do ICMS em todo o território nacional.

O que já era grave ficou pior: a liminar estendeu para todos os combustíveis a base de cálculo (média móvel dos últimos 60 dias) que a própria Lei 192/22, em seu artigo 7º, especificava apenas para o diesel. O Colégio do Procuradores dos Estados já analisou que não há qualquer base legal que sustente essa medida. Enquanto isso, agrava-se o rombo no caixa dos estados, no meio do exercício financeiro.

A decisão é estranha à sensibilidade e à vigilância que o Supremo tem demonstrado diante das obrigações dos entes subnacionais. Recentemente, por exemplo, o STF julgou o tema 745, que considera essenciais as alíquotas do ICMS nas operações com energia elétrica e comunicação. Sua interpretação refletiu-se no prazo estabelecido como termo a quo para sua decisão: janeiro de 2024. Assim, como reza o bom senso, foram respeitadas a Lei de Diretrizes Orçamentárias, o plano plurianual, o equilíbrio das receitas municipais, bem como a aplicação correta dos fundos para a educação e a saúde.

Como se não bastasse, a tal PEC Kamikaze, que se transformou na Emenda Constitucional 123, aprovada em 13 de julho, criou uma nova aberração com prazo de 20 anos. Esse é o período de validade para as mudanças na tributação sobre o álcool, engessando ainda mais o tema. Para o ambiente de negócios, a aprovação da PEC em total desrespeito aos ritos legais para a tramitação de uma Emenda Constitucional provoca graves suspeitas sobre o uso político de regras tributáveis em um setor estratégico.

Em meio a esse conjunto de decisões, passou-se a discutir se é constitucional definir como essenciais determinados serviços e produtos (como a gasolina), assim considerados pela Lei Complementar Federal 194/22. Essa interpretação é fundamental, uma vez que todas as mercadorias essenciais devem ser submetidas à alíquota modal. Os Estados bem que tentaram apresentar uma proposta ao ministro Gilmar Mendes, que é relator da ADPF 984, impetrada pela AGU para tratar desse tema. Afinal, a gasolina deve ser considerada essencial tanto quanto medicamentos, cestas básicas e material escolar? Os Estados já aplicam tratamento diferenciado sobre todos esses itens, considerando sua importância especialmente para os mais pobres. Mas, curiosamente, nenhum deles consta na lista exaustiva da LC 194/22.

Aliás, esta lei é eivada de irregularidades, pois contraria o art. 155 da Constituição Federal. A competência privativa para fixar alíquotas é dos estados, inclusive para decidir sobre a essencialidade e seletividade dos produtos. A interferência da União na regulação dessa matéria inviabiliza os fundos de combate à pobreza da grande maioria dos Estados, já que esses recursos dependem da sua arrecadação – duramente comprometida pelas medidas cujo principal combustível é o conflito.

Para resolver a imensa confusão federativa e a insegurança jurídica, a melhor saída para o caso dos combustíveis é criar um convênio no Confaz que regule a Emenda Constitucional 33/01. Ela estabeleceu a possibilidade da incidência monofásica do ICMS sobre combustíveis, com aspectos e peculiaridades próprias.

A regulação via Confaz deve considerar as imensas limitações que estão postas à mesa. A aplicação de uma alíquota ad rem única por combustível, por exemplo, cria um obstáculo ao sistema de crédito e débito e fere o princípio da não cumulatividade dos valores advindos de operações anteriores (em contraposição à incidência monofásica). Além disso, a suscitada compensação financeira de um possível “estado ganhador” para o eventual “estado perdedor” de receitas de ICMS não encontra respaldo orçamentário legal para a sua efetivação no meio do ano fiscal. Essa proposta apenas reforça a insegurança entre os entes diante do risco de não haver o pagamento do crédito entre os estados.

O único caminho viável tecnicamente é através do Scanc (Sistema de Captação e Auditoria dos Anexos de Combustíveis), já em utilização atualmente nos Estados para o álcool.

Para utilizar o Scanc para todos os combustíveis, será necessário criar alterações substanciais no sistema, além de mudanças nas funções utilizadas pelas distribuidoras. Esses ajustes somente estarão aptos para implantação a partir de 2023.

Superadas essas deficiências operacionais, a tributação ad rem tem algumas vantagens como a simplificação e uniformização das normas referentes à tributação do setor de combustíveis. Isso reduzirá significativamente os custos burocráticos e operacionais no setor. Sobretudo, afastará agentes oportunistas que se utilizam de brechas tributárias para causar impactos concorrenciais, gerando perdas aos cofres públicos e ao consumidor final.

A substituição tributária, até então utilizada, é responsável pelo recolhimento do ICMS que é antecipado para a refinaria ou para a distribuidora. Assim, como há mudanças entre o preço estimado na hora do recolhimento na refinaria, com a base presumida de cálculo, e o preço praticado nas bombas de abastecimento, a tributação não é definitiva e requer compensações posteriores com pedidos de restituição ou complementação de preço. O modelo gera pesados custos financeiros e operacionais na cadeia produtiva.

Já com o sistema de tributação monofásico, o imposto seria recolhido de forma concentrada na produção, o que eliminaria essas compensações e contribuiria com o fim das empresas de fachadas, que propositadamente não recolhem suas parcelas de tributos. Como a alíquota seria específica, não haveria variação de arrecadação ao longo da cadeia produtiva, simplificando sobremaneira os custos e melhorando a fiscalização.

A implementação de forma estrutural da cobrança monofásica pelo ad rem nacional, por critério a ser definido pelos estados em convênio, trará maior segurança jurídica para todas as partes, diminuindo as perdas para os entes subnacionais a partir da entrada em vigor das Leis Complementares 192 e 194.

Como consequência fundamental dessa medida, teremos o aumento da competitividade saudável entre as empresas e a redução de custos. A monofasia com ad rem nacional irá atenuar a volatilidade dos preços. Programas de suporte aos consumidores de baixa renda e a categorias profissionais específicas poderão ser adotados de forma complementar para enfrentar efeitos mais pontuais da variação de preços.

Esta é uma solução técnica e não uma manobra que promove uma drástica redução de carga tributária feita de forma heterônoma, como criou o governo federal. Infelizmente, agora só cabe remediar o problema e a confusão causada pelo Sobrenatural de Almeida.

 é secretário de Fazenda do estado de Alagoas. Advogado, professor, mestre em contabilidade e administração pela Fucape Business School, com especialização em economia empresarial pela Universidade Cândido Mendes; especialização em administração pública pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e em direito do trabalho e previdência pela Universidade Cândido Mendes. Membro fundador do Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe).

Via Conjur