Com a edição da Lei complementar nº 192/2022, entra em vigor o regime monofásico do ICMS-combustíveis, com alíquotas uniformes, que se encontrava há mais de 20 anos previsto na Constituição, introduzido pela Emenda à Constituição nº 33/2001. Com isso, as empresas e o consumidor brasileiro ficarão livres do inferno fiscal no qual se transformou a substituição tributária no setor e toda a gravosidade ou prejuízos decorrentes, como acúmulo de cobranças, não devolução de créditos, guerras de liminares, sonegação desenfreada e outros.

O primeiro efeito desta regulação será a perda de objeto da ADO nº 68/2021, em curso no STF, para reconhecer a mora do Congresso Nacional quanto ao emprego da Lei Complementar prevista no artigo 155, § 2º, XII, “h”, da CF para instituir o regime monofásico do ICMS-combustíveis, o que acaba de ser feito. De uma forma ou de outra, portanto, o Congresso seria instado a legislar sobre o tema. Por isso, andou bem ao se antecipar ao julgamento.

Com os artigos 1º e 2º da Lei complementar nº 192/2022, foram identificados os combustíveis sobre os quais o ICMS incidirá uma única vez (monofásico), ainda que as operações se iniciem no exterior (importação), qualquer que seja sua finalidade, a saber: “I – gasolina e etanol anidro combustível; II – diesel e biodiesel; e III – gás liquefeito de petróleo, inclusive o derivado do gás natural”.

Vê-se que o etanol hidratado, o álcool concorrente da gasolina “C”, não se encontra abrangido no regime monofásico. Relevante que isso se preste a empregar um tratamento favorecido ao etanol hidratado, na medida que se presta a (i) contribuir para a agenda dos compromissos assumidos com o Acordo de Paris, (ii) promover o aumento do uso de biocombustíveis, bem como sua produção, além de (iii) assegurar a eficiência energética. E diga-se o mesmo no caso do biodiesel e do Etanol Anidro, que devem receber uma alíquota única diferenciada e favorecida por parte dos estados.

A Emenda Constitucional nº 33/2001, ao adicionar a alínea “h” ao artigo 155, § 2º, XII, atribuiu ao legislador nacional o poder de criar, por meio de lei complementar, um regime de incidência monofásica do ICMS-combustíveis. Assim, cabe à Lei Complementar dispor sobre as normas gerais em matéria de legislação tributária, dos art. 146, III, “a” e “b”, e artigo 155, § 2º, XII da CF.

A incidência única deve ter alíquota única e uniforme em todo o território nacional. Para tanto, o artigo 6º da Lei complementar nº 192/2022 prescreve que os Estados e o Distrito Federal disciplinarão o disposto nesta Lei Complementar mediante deliberação nos termos da alínea g do inciso XII do § 2º do artigo 155 da Constituição. E, para tanto, o artigo 3º, V, “a” e “b” da Lei complementar nº 192/2022, explicita que as alíquotas deverão atender ao seguinte:

a) serão uniformes em todo o território nacional e poderão ser diferenciadas por produto;
b) serão específicas (ad rem), por unidade de medida adotada, nos termos do § 4º do art. 155 da Constituição Federal;

No caso do artigo 155, § 2º, XII, “g” da CF, este estabelece que lei complementar regulará “a forma” como se dará a “deliberação dos Estados e do Distrito Federal”. Por conseguinte, quanto ao procedimento, i.e., à forma de deliberação, não se pode afastar daquele previsto na Lei Complementar nº 24/1975, como prescreve a lei em comento.

Logicamente, o poder de “deliberação dos Estados e do Distrito Federal” não é amplo a ponto de afastar o papel da União, como legislador nacional, por meio das competências de editar normas gerais do artigo 146, III e art. 155, § 2º, XII da CF. Logo, nada impede que Lei Complementar disponha sobre o procedimento (forma), ou sobre os regimes a serem considerados na “aplicação (…) inclusive as relativas à apuração e à destinação” do ICMS-combustíveis. É o que se encontra nos art. 3º a 6º da Lei complementar nº 192/2022.

A atribuição de competência aos convênios estaduais pressupõe um regime normativo que seja “aplicado” e que defina o modelo de “apuração”. Deveras, não se pode empregar interpretação que atribua poder exclusivo aos convênios para dispor sobre alíquotas ou base de cálculo do ICMS-combustíveis, com esvaziamento das competências para editar normas gerais em matéria de ICMS, que é exclusiva da União.

O convênio de ICMS-monofásico, na forma do art. 155, § 4º, IV, da CF, combinado com o artigo 155, § 2º, XII, “g”, da CF, reclama o consenso prévio dos estados e do Distrito Federal, mas sempre nos limites dos pressupostos a serem atendidos, na condição de “normas gerais”.

A opção do constituinte na EC nº 33/2001 foi aquela de conferir a competência para dispor sobre alíquotas mediante deliberação dos Estados de do Distrito Federal, nos termos do § 2º, XII, “g”, da CF. Atualmente, o referido dispositivo encontra-se regulado pela Lei Complementar nº 24/1975, que exige unanimidade na deliberação dos convênios sobre benefícios fiscais.

A Lei Complementar n. 24/1975, no artigo 2º, § 2º, após indicar a forma, prescreve o procedimento, pelo que estatui: A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro-quintos, pelo menos, dos representantes presentes. Assim, as alíquotas uniformes quedam-se subordinadas aos convênios. Motivos de segurança jurídica o recomendam.

A partir deste momento, caberá aos Estados e ao Distrito Federal iniciarem intensas negociações políticas para deliberação do Confaz sobre as alíquotas, as quais deverão ser uniformes e diferenciadas por produtos.

Os estados questionam a escolha do legislador complementar, no referido artigo 3º, V, “b”, de alíquotas específicas (ad rem), por unidade de medida adotada, ao afastar as alíquotas “ad valorem”, como determina o texto constitucional. Este é um aspecto de importantes reflexões.

Nos moldes do artigo 155, § 5º, o texto é esclarecedor, ao prever que cabe à deliberação dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do § 2º, XII, “g” da CF, estabelecer as regras necessárias à “aplicação” do disposto no § 4º, inclusive as relativas à “apuração” e à “destinação” do imposto. Portanto, a atribuição de competência aos convênios pressupõe um regime normativo que seja “aplicado” e que defina o modelo de “apuração”. É nesse contexto que não se pode empregar interpretação que atribua poder exclusivo aos convênios para dispor livremente sobre alíquotas ou base de cálculo do ICMS-combustíveis.

Veja-se, a Constituição prescreve que as alíquotas “poderão” ser “ad rem” ou “ad valorem”. Logo, é de se examinar essa dicção como autorização para o legislador complementar eleger o modelo de alíquotas a ser empregado. E como o texto Constitucional atribui à Lei Complementar a tarefa de dispor sobre as normas gerais em matéria de legislação sobre o ICMS-monofásico, a escolha acompanha o modelo geral.

Para além da autorização para a instituição da monofasia dos combustíveis pelos Estados, a Lei Complementar nº 192/2022, trouxe medidas chamadas “de curso prazo”, para aliviar o aumento de preços de combustíveis e conter os impactos negativos sobre a inflação, dos artigos 7º, 8º e 9º.

O artigo 7º, da Lei Complementar, altera a base de cálculo da substituição tributária para as operações com diesel, para determinar que esta, até 31/12/2002, será a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 meses anteriores à sua fixação.

Esta alteração poderá trazer aumento da tributação do diesel para alguns Estados e redução para outros estados. Naqueles cuja aplicação implique aumento da tributação, é certo que tal aumento só poderá valer a partir do próximo exercício financeiro, em razão da garantia da anterioridade tributária, que assegura o princípio da não surpresa (artigo 150, III, “b” da CF). E, no que se refere aos Estados que terão uma redução da carga tributária, verifica-se que a medida pode ser considerada uma afronta ao artigo 151, III, da CF, que proíbe à União “instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”. Dúvidas hão surgir sobre se se tem efetivamente “isenção parcial” em caso de modificação do parâmetro da base de cálculo. Nesse sentido, o STJ já decidiu que “[e]xigir a redução da base de cálculo do imposto estadual, no caso, é implementar isenção heterônoma em hipótese não permitida pela Constituição Federal”.[1]

O artigo 8º (cuja função é servir de validade ao artigo 9º) surge como uma “tentativa” de “afastar” os efeitos do artigo 14, da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF e do artigo 125 da Lei nº 14.194, de 20 de agosto de 2021 (Lei de Diretrizes Orçamentárias), no que se refere às operações com biodiesel, óleo diesel, querosene de aviação e gás liquefeito de petróleo, derivado de petróleo e de gás natural, no exercício de 2022. É uma sandice jurídica sem par.

O artigo 14 da LRF exige que a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária seja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário-financeiro. Esta é uma “norma geral” de Direito Financeiro, na competência do artigo 163 da Constituição.

A LRF prescreve, no seu artigo 14, pelo menos duas limitações para a prática de atos de importem “renúncia de receita”, a saber: (i) demonstração de que a renúncia foi considerada na lei orçamentária; e (ii) medidas de compensação. E, além disso, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que tem natureza de norma constitucional, traz dispositivo semelhante, ao estabelecer no artigo 113, que “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”, conforme redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016. Portanto, é induvidosa a inconstitucionalidade do artigo 8º da Lei complementar nº 192/2022.

Ademais, o artigo 9º, ao reduzir a zero as alíquotas de PIS e Cofins também contraria o disposto no § 10, do artigo 73, da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), que proíbe a criação de quaisquer benefícios em ano eleitoral.

Embora o artigo 9º tenha sido veiculado por Lei Complementar, faz-se necessário pontuar que a este não se deve atribuir hierarquia de “Lei Complementar”, ao veicular norma cuja competência se basta com lei ordinária. Nesse sentido, já decidiu o STF no julgamento do Tema 71, de Repercussão Geral, objeto do RE nº 377.457-PR,[2] que não há relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar em casos de competência não reservada à Lei Complementar. Diante disso, de todo incabível a pretensão de empregar lei complementar para “driblar” a proibição da Lei Eleitoral.

Numa síntese, as medidas de redução de tributos pretendidas não podem ser aplicadas no exercício de 2022. Quando muito, poderão valer no próximo exercício financeiro, no caso das alíquotas do PIS e da Cofins. Sobre a base de cálculo da substituição tributária do ICMS incidente sobre o diesel, esta reclama o exame exclusivo por parte do Confaz.

Quanto à destinação das receitas da monofasia, as regras dos incisos I a III, do § 4º do art. 155 da CF promovem a distribuição do produto arrecado do ICMS, como previsto no art. 3º da Lei complementar nº 192/2022, a saber:

II – nas operações com os combustíveis derivados de petróleo, o imposto caberá ao Estado onde ocorrer o consumo;
III – nas operações interestaduais, entre contribuintes, com combustíveis não incluídos no inciso II deste caput, o imposto será repartido entre os Estados de origem e de destino, mantendo-se a mesma proporcionalidade que ocorre nas operações com as demais mercadorias;
IV – nas operações interestaduais com combustíveis não incluídos no inciso II deste caput, destinadas a não contribuinte, o imposto caberá ao Estado de origem.

Por fim, não se encontra, na EC nº 33/2001, nenhum regime especial para regular a anterioridade geral. Logo, aplica-se o artigo 150, III, “b” da CF, de tal modo que a mudança do ICMS-combustíveis para o regime monofásico deve ser aprovada no exercício financeiro anterior ao da sua instituição.

Exercidas as competências da União e dos Estados, após a entrada em vigor da Lei complementar nº 192/2022, aplica-se o artigo 3º, V, “c”, segundo o qual as alíquotas do regime monofásico dos combustíveis “poderão ser reduzidas e restabelecidas no mesmo exercício financeiro, observado o disposto na alínea c do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição Federal”. Ou seja, no prazo de 90 dias, a contar da modificação.

Como já decidiu o STF, em repercussão geral, apreciando questão relativa aos efeitos da própria EC nº 33/01: “a tributação somente será admissível se também respeitadas as regras da anterioridade, cuja observância se afere com base em cada legislação local que tenha modificado adequadamente a regra-matriz e que seja posterior à LC 114/2002”.[3]

Sempre que houver alteração substancial de determinado regime jurídico de tributação, isto equivale a verdadeira criação de novo tributo, o que exige observar o conteúdo dos princípios da anterioridade, da não-surpresa e da irretroatividade em face do período de anterioridade. E o STF aplica o princípio da anterioridade a todos os casos de majoração da carga tributária, ainda que de forma indireta. Por exemplo, o RE 775.181, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 27/10/2016, do AI 713.194, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 5/4/2016. E ainda: RE 1.134.239, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe de 30/11/2018; RE 1.150. 649, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 21/08/2018.

Por fim, relativamente ao ICMS-monofásico, em todos os Estados e no Distrito Federal, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que compreende as alterações na legislação tributária (artigo 165, § 2.º), deverá contemplar estas mudanças assinaladas, bem como na preparação da proposta da lei orçamentária anual de cada um deles. Portanto, recomenda-se que os Estados incluam, desde logo, na LDO as mudanças no sistema tributário, nos termos da EC nº 33/2001 e da Lei complementar nº 192/2022.

Há muitas outras questões fundamentais a serem debatidas. Estas notas apenas examinam aspectos de maior emergência no debate sobre a compatibilidade com a Constituição. O momento exige atitude firme do mundo jurídico e dos políticos para garantir a efetividade desta legislação, de modo a propiciar redução de custos para os consumidores e praticabilidade no setor de combustíveis. Em vista disso, deve-se acompanhar de perto toda a regulamentação da Lei complementar nº 192/2022, nas deliberações dos Estados, no âmbito do Confaz.

Via Conjur