O ICMS (imposto sobre a circulação de bens e serviços) está, desde o início de fevereiro, no centro de uma disputa entre Jair Bolsonaro e governadores cujo pano de fundo é a escalada dos preços de combustíveis. Após o presidente desafiar os estados a zerar a alíquota do tributo sobre gasolina, etanol e diesel, uma carta assinada por 20 governadores foi divulgada nesta segunda-feira (17) com críticas à postura de Bolsonaro em relação a “impostos vitais para a sobrevivência” das unidades federativas.

A seguir, Aos Fatos mostra o real impacto do ICMS e de outros tributos no preço pago por motoristas nas bombas e como mudanças no recolhimento afetam as contas públicas.

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Quais são os tributos sobre combustíveis?

Existem quatro tributos que são cobrados sobre os combustíveis vendidos nos postos: três federais (Cide, PIS e Cofins) e um estadual (ICMS). Para cada litro cobrado de gasolina nas bombas, em média, R$ 1,93 são tributos; para cada litro de etanol ou diesel, a carga tributária é de R$ 1,11, de acordo com levantamento de janeiro de 2020 da Fecombustíveis (Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes), entidade que reúne as empresas do setor.

A maior parte da tributação é referente ao imposto estadual. A alíquota do ICMS varia de estado para estado, mas, em média, ele representa 78% da carga tributária sobre álcool e diesel e 66% sobre gasolina, segundo estudo da Fecombustíveis.

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Como são definidos os preços dos combustíveis?

Para entender a composição do preço dos combustíveis nos postos é preciso enxergar a cadeia de distribuição do produto. As empresas petrolíferas extraem e vendem o petróleo para as refinarias, que o transformam no combustível que é comercializado às distribuidoras. Essas, por sua vez, adicionam biocombustível à gasolina ou ao diesel e revendem os dois para os postos de gasolina.

Segundo a Petrobras, empresa que detém hoje 13 das 17 refinarias do país, o custo de produção ou importação dos combustíveis e a margem de lucro representam 29% do preço final da gasolina e 51% do custo do diesel. O lucro das distribuidoras e dos postos corresponde a 13% e 17% do valor final da gasolina e do diesel, respectivamente. A empresa não faz levantamento da composição do preço do etanol.

Também influencia no preço cobrado no posto a quantidade de biocombustível. Por determinação legal, a gasolina vendida nos postos precisa ter 27% de etanol na mistura, e o diesel, 11% de biodiesel. Com isso, 14% do preço da gasolina e 8% do preço do diesel são referentes ao custo de compra de biocombustíveis pelas distribuidoras.

Nos postos, 29% do preço da gasolina e 15% do preço do diesel são relativos a ICMS. Os tributos federais representam 15% do preço da gasolina e 9% do preço do diesel.

Segundo dados da Fecombustíveis, no caso do etanol, os tributos federais representam 3% do preço e o ICMS representa 13%. O custo e a margem de lucro das usinas representam 63% do preço final, e os das distribuidoras e revendedoras são 20% do preço do etanol.

A política de preços da Petrobras, detentora de 98% da capacidade de refino do país, prevê que o valor de venda dos combustíveis acompanhe as flutuações do mercado internacional de petróleo. É por isso que o aumento do preço da commodity por eventos internacionais, como conflitos no Oriente Médio, afeta o preço dos combustíveis no Brasil. As variações do dólar também impactam no valor final da gasolina e do diesel, porque 20% dos combustíveis consumidos no Brasil são importados, segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), órgão que regula o setor.

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O que é o ICMS e como ele é cobrado?

O ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) é um tributo estadual que incide basicamente sobre mercadorias. Ele é, por determinação constitucional, não cumulativo, ou seja: não é cobrado ao longo da cadeia produtiva, apenas sobre o valor final pago pelo consumidor.

Cada estado pode definir a alíquota do ICMS dentro dos limites determinados pelo Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), que estabelece teto e piso, explica Gustavo Faviero, advogado tributarista do Diamantino Advogados. Esse conselho é composto pelos secretários da Fazenda estaduais e por representantes do Ministério da Economia.

Segundo levantamento da Fecombustíveis, existem sete alíquotas diferentes de ICMS no Brasil para gasolina (oscilando entre 12% e 35%), 13 alíquotas para etanol (entre 12% e 30%) e oito para diesel (entre 12% a 25%).

De acordo com a lei complementar nº 87/1996, conhecida como Lei Kandir, o ICMS é cobrado nas refinarias, quando elas vendem o combustível para as distribuidoras. As empresas de refino pagam o imposto para o estado onde o combustível será comercializado ao consumidor final. Por exemplo: se uma refinaria do Rio de Janeiro vende diesel para uma distribuidora mineira que, por sua vez, irá revendê-la a um posto goiano, o ICMS será recolhido apenas em Goiás.

Para calcular o valor do imposto, as refinarias precisam também saber por qual preço o produto será vendido nos postos. Isso é feito usando o PMPF (preço médio ponderado ao consumidor final), definido pelo Confaz. Ele é calculado com base em uma pesquisa de mercado feita nos postos de combustíveis de cada estado quinzenalmente. O PMPF mais recente foi publicado em 24 de janeiro e o próximo deve sair no começo de março. No caso da gasolina, por exemplo, o preço de referência varia de R$ 4,03, no Amapá, o menor valor, a R$ 5,03 no Acre.

Em 7 de fevereiro, Bolsonaro compartilhou nas redes sociais um vídeo do comentarista da Rede Pampa Gustavo Victorino com críticas ao uso do PMPF no cálculo do ICMS e a sugestão de uso do preço do combustível vendido na refinaria como base de cálculo do imposto estadual. Para José Luiz Melo, advogado especialista em direito tributário e sócio do Dalla Pria Advogados, tal modificação exigiria mudanças na lei complementar e na Constituição e poderia aumentar a taxação sobre o produto.

“A cobrança na fase final está relacionada ao fato de o imposto ser cobrado apenas uma vez sobre o produto final. Sem isso, seria necessário cobrar em cada etapa da cadeia produtiva, o que poderia significar até aumento de imposto”, afirmou.

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Por que a Petrobras reduz o valor na refinaria, mas o preço no posto não cai?

Essa é a questão que o presidente tentou responder numa série de tweets que publicou em 2 de fevereiro. Segundo Bolsonaro, a queda do preço nos postos demora a ocorrer por conta do uso do PMPF para calcular o ICMS. Como o preço de referência só é alterado a cada 15 dias, as reduções e os aumentos no preço do combustível vendido pelas refinarias demoram algum tempo para chegar aos consumidores.

O ICMS, no entanto, é uma parte da equação. Segundo nota técnica da ANP de 2019, a forte concentração do setor de distribuição também afeta o repasse de alterações dos preços nas refinarias para os consumidores.

O estudo da agência reguladora aponta que apenas três distribuidoras concentram 65% do mercado de distribuição de gasolina. A ANP também destaca que, no período de análise, as distribuidoras incorporaram ao lucro “parte significativa dos descontos praticados” pelas refinarias. Essa concentração no mercado de distribuição, no entanto, não foi mencionada por Bolsonaro em nenhuma declaração pública.

Um fator que o presidente também não mencionou é que os postos podem vender abaixo do preço de referência usado para calcular o ICMS e ficar com crédito tributário do que recolheu a mais. Nesse caso, o estabelecimento pode abater esse saldo de outros impostos devidos ao estado.

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Qual impacto fiscal de uma mudança nos tributos sobre combustíveis?

Os governos federal e estaduais estão em situação financeira delicada, e a proposta que Bolsonaro fez de zerar os impostos sobre o combustível dificultaria ainda mais a reestruturação das contas públicas.

Governo federal. Em 2019, o Governo Central (Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social) registrou um déficit primário de R$ 95,1 bilhões, ou seja, gastou mais do que arrecadou. Tributos sobre combustíveis representaram arrecadação de R$ 27,4 bilhões, 1,6% da receita tributária, segundo a Receita Federal. Considerando que o governo não arrecada o suficiente para cobrir suas despesas, uma possível decisão de zerar os tributos sobre combustíveis ampliaria o déficit fiscal se não houver compensação, como aumento de outro tributo ou corte de despesas.

Em 2018, na gestão de Michel Temer, o governo reduziu a cobrança da Cide e do PIS/Cofins sobre o diesel depois de uma greve de caminhoneiros que parou o país por dez dias. Na época, a contrapartida orçamentária foi a extinção de um benefício criado em 2011 para isentar empresas de 56 setores do recolhimento da contribuição previdenciária de 20% sobre a folha de pagamentos. No ano passado, as desonerações da Cide e do PIS/Cofins significaram perda de arrecadação de R$ 7,8 bilhões e R$ 2,8 bilhões, respectivamente, segundo o Tesouro Nacional.

Estados. Das 27 unidades da federação, 17 estão com deterioração significativa da situação financeira, segundo o Tesouro Nacional. Dessas, seis já têm previsão de terminar 2020 com as contas no vermelho. O economista Guilherme Tinoco, especialista em finanças públicas, destaca que o ICMS é a maior fonte de arrecadação dos estados, representando pelo menos metade de suas receitas. Somente o montante arrecadado com combustíveis equivale de 5% a 20% da receita gerada para os cofres estaduais.

De acordo com dados mais recentes disponíveis do Confaz, os estados arrecadaram R$ 89,4 bilhões em 2018 com ICMS de petróleo, combustíveis e lubrificantes. Os que mais arrecadaram foram São Paulo (R$ 17,39 bilhões), Minas Gerais (R$ 11,36 bilhões) e Rio Grande do Sul (R$ 6,24 bilhões). O imposto estadual representou aproximadamente 15% das receitas de Minas Gerais e Rio Grande do Sul e 7% da de São Paulo.

Eventuais mudanças no ICMS não têm o impacto limitado ao caixa dos estados e atingiriam também os municípios. A Constituição prevê que 25% do valor arrecadado com ICMS deve ser repassado às prefeituras. De acordo com o Tesouro Nacional, 43% dos municípios brasileiros enfrentam problemas de caixa. Para Tinoco, uma redução no ICMS teria um importante efeito-cascata, considerando a fragilidade fiscal das prefeituras.

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Quais mudanças estão em discussão?

Para além da retórica bolsonarista, as críticas ao recolhimento do ICMS concentram-se no fato de o modelo atual favorecer a sonegação. O advogado tributarista José Luiz Melo explica que a prática é motivada pela multiplicidade de alíquotas entre os estados e pela complexidade da cobrança: “uma prática comum é de um distribuidora simular a venda para um estado com ICMS mais barato, vender em um local com ICMS mais caro e lucrar com a diferença”.

Segundo estudo da FGV (Fundação Getulio Vargas), R$ 7,2 bilhões deixaram de ser arrecadados em 2018 com ICMS sobre combustíveis por inadimplência ou sonegação.

No começo de fevereiro, Bolsonaro afirmou que o governo iria apresentar um projeto de lei para mudar a forma de cálculo do ICMS sobre combustíveis, criando um valor fixo a ser cobrado por litro. Governadores afirmaram após encontro com ministro da Economia, Paulo Guedes, na semana passada que ele garantiu que uma mudança nas regras do imposto só seria feita dentro do contexto de uma reforma tributária mais ampla.

Guedes prometeu enviar ao Congresso uma proposta de reforma tributária em duas semanas. O texto, no entanto, não deve alterar as regras do ICMS. Desde o ano passado, o ministro defende que a reforma deve ser restrita a impostos federais.

A principal proposta em discussão no Congresso de reforma tributária, a PEC (proposta de emenda à Constituição) nº 45, já aprovada no Senado e em tramitação na Câmara, prevê unificação do ICMS e de uma série de tributos federais e municipais em um único imposto sobre bens e serviços.

Para o economista Guilherme Tinoco, o país está em um momento de rediscussão do pacto federativo e da distribuição de recursos do Estado: “É um momento de colocar todo mundo na mesa para conversar, não fazer ameaças”.

Via Aos Fatos