Confira o artigo do auditor fiscal Bruno Gomes, publicado na edição do Informativo Diat nº 60 de dezembro de 2020. Clique aqui para salvar o arquivo em PDF.

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Introdução: Após um ano tomado por circunstâncias ímpares, estamos diante de uma caminhada íngreme. Ao passo que as tradicionais tensões existentes entre o Estado e a sociedade se afloram, também surge uma rara oportunidade de reconciliação. Nesta cruzada pela retomada da produção de riqueza real, o agente público – sobretudo o fazendário – é chamado ao palco. Ao mesmo tempo em que se exige da livre iniciativa soluções criativas, cabe à burocracia estatal garantir um ambiente coeso e rigorosamente orientado ao desenvolvimento.

A burocracia e o Estado Nacional

Se em outros tempos pensávamos que a complexidade das coisas já era desafio suficiente, o ano corrente acrescentou uma dose extra à equação. Enquanto nossos similares da livre iniciativa se empenham para encontrar soluções criativas, o agente público pode acabar se envolvendo com a perspectiva de ter o Estado como anteparo pessoal. Eventualmente, furta-se da percepção de que o Estado materializa os seus propósitos pela atuação direta da burocracia da qual faz parte o próprio agente.

Embora já muito surrada pelos modernismos da gestão, a burocracia remonta à formação do Estado Nacional brasileiro. Nos projetos da nossa independência, dois grupos disputavam a autoria do formato de Brasil que dali em diante conduziria nosso destino1. Fora da burocracia do Império, o Brasil era um nome genérico que designava parte do conjunto das possessões ultramarinas de Portugal. Entre os oligarcas não havia pensamento de unidade – ou se era português, ou era paulista, mineiro, rio-grandense. Para a oligarquia que não tinha o sentimento pátrio, o Estado não passava de um mal necessário para a garantia de seus poderes e gestão dos seus interesses pessoais.

No entanto, apenas a burocracia conseguiu enxergar o país como uma unidade. Tiveram uma missão mais complexa e árdua que a dos estados europeus, erigidos sobre pilares de uma civilização antiga. Unicamente, os representantes da burocracia estatal conseguiam enxergar o bem comum e sentiam-se protagonistas das ideias que tornaram possível a construção do Brasil.

Dos obstáculos aos receituários

É usual ao agente público se pensar apenas enquanto um conjunto de atribuições técnicas objetivas, amparando-se na impessoalidade. Entretanto, é importante manter no horizonte que cada peça dessa engrenagem estatal é constituída por um cidadão brasileiro. E essa percepção se mostra cada vez mais acentuada diante do cenário de imersão na maior crise econômica e sanitária da História. Os pensamentos e decisões de cada indivíduo devem ter como ponto de partida os interesses nacionais, o nosso destino conjunto, compartilhando a responsabilidade pela construção de uma sociedade coesa. O trabalho conjunto com os nossos governantes eleitos pelo voto popular exige superar a ideia de que o protagonismo pertence apenas ao “andar de cima”.

A bem da verdade, com exceção do cenário da pandemia, o encolhimento do parque industrial faz parte da nossa conjuntura econômica e produtiva desde meados dos anos 1980. Neste sentido, há exatos cinquenta anos, Ernesto Geisel anteviu o futuro em sua aula inaugural na Escola Superior de Guerra2, discursando sobre os campos econômico, político, psicossocial e militar no Brasil. Já naquele tempo enfrentávamos com empenho os mesmos entraves e desafios que precisam ser superados para darmos continuidade à construção do nosso país.

Em momentos semelhantes, quando outras nações enfrentaram depressões agudas, as soluções tiveram contornos inusitados. Foram salvas por um punhado de homens que tiveram a coragem de não serem atuais. A exemplo da Alemanha da década de 1920, arrasada pela guerra, enfrentava a hiperinflação da república de Weimar – na taxa de 29,5 mil por cento ao mês, ou 20,9% ao dia, tendo acumulado um bilhão por cento em apenas um ano3. As soluções ortodoxas da época deixaram o país à deriva. O cenário levou a uma dramática austeridade, até que o banqueiro Hjalmar Schacht propôs uma inventiva solução que, em cinco anos, transformou um Estado falido na mais forte economia europeia da época4.

A adoção sistemática de receituários econômicos tradicionais tem se mostrado insuficiente para reverter a situação penosa em que o Brasil se encontra. Por exemplo, a baixa compreensão da nossa estrutura industrial durante as últimas quatro décadas nos levou a conclusões precipitadas que reduziram o controle da produção local e nacional, por vezes transferindo o comando do nosso destino para fora de nossas mãos. De forma semelhante, nossa rica capacidade agrícola corre o risco do enfraquecimento de sua principal virtude: a aptidão para alimentar o nosso povo somada ao poder produtivo que nos torna invejados e importantes para o mundo globalizado. Talvez, os nossos índices e teoremas mecânicos tenham funcionado meramente como um termômetro, que até mede a temperatura, mas não faz passar a febre.

A inventividade catarinense

Hoje ainda ecoam vozes de doutrinas ortodoxas avessas à participação ativa da burocracia estatal no impulsionamento ao desenvolvimento econômico, geralmente movidas por um idealismo utópico, que se distancia da avaliação orgânica e pragmática dos resultados. No fim das contas, nos corredores e gabinetes da estrutura governamental catarinense temos modelos de gestão que promoveram um desenvolvimento industrial exemplar, referência para o desenvolvimento nacional. Além de dispormos de uma matriz econômica diversificada, despontamos em setores importantes da indústria de transformação. De acordo com dados fornecidos pelo MDIC5, os catarinenses respondem por mais da metade de todo o cobre importado pelo país, que corresponde a 720 milhões de um total de 1,2 bilhão de dólares, para o período de janeiro a novembro de 2020.

Mesmo diante dos gargalos logísticos, a atividade agropecuária exerce um papel fundamental na composição do saldo corrente do comércio exterior, lutando continuamente pela manutenção de sua competitividade internacional, a despeito de sucessivos ataques à sua pujança e capacidade produtiva. Mais importante ainda, temos a movimentação econômica local e a garantia da segurança alimentar, pilares fundamentais para o bem-estar pleno de qualquer sociedade. Além disso, é importante destacar que Santa Catarina possui a melhor estrutura fundiária de distribuição de terra no país6, o que se reflete diretamente no equilíbrio da percepção de renda entre as famílias agricultoras.

Pelos olhares da iniciativa privada, também somos nacionalmente conhecidos por termos superado a inércia institucional, proporcionando uma política tributária harmônica, acompanhada de boa governança e segurança jurídica, propondo arranjos que permitem e encorajam as pessoas a se dedicarem plenamente às atividades produtivas. A visão de simbiose entre o Estado e a livre iniciativa se destaca pelo ganho de dinamismo aliado à preservação dos interesses locais. Estampamos um exemplo de coesão entre o desenvolvimento econômico e a manutenção da soberania, promovendo práticas que têm potencial para inspirar a transformação da realidade nacional.

Os setores de pujança merecem atenção especial. Há situações em que apenas um olhar estratégico atento permite antever riscos e perceber oportunidades. É o caso das madeiras de reflorestamento, em que devemos nos atentar a eventuais arrendamentos de longo prazo tomados por madeireiras estrangeiras, visando futuramente algo semelhante à “transferência entre estabelecimentos do mesmo titular”. De outro lado, destaca-se a plena atividade do estaleiro em Itajaí7, adquirido pela alemã ThyssenKrupp8 – momento em que se abrem as portas para negócios importantes no eixo industrial militar8, com potencial para o avanço de parcerias bilaterais para benefício comum.

Diante deste cenário de reordenamento financeiro, econômico e tecnológico, esperamos que os livres interesses privados continuem compactuando com a burocracia estatal, costurando conjuntamente o desenvolvimento econômico e social. Aguardar que os livres desígnios privados costurem todo o caminho através da selva de interesses é condenar o próprio povo ao acaso. Não basta conservar o entendimento de que o Estado é, por natureza, o ente dotado dos instrumentos capazes de pavimentar o caminho do desenvolvimento. Como parte da burocracia estatal – no seu melhor e real sentido -, cabe também ao agente público, especialmente o fazendário, assumir o protagonismo que lhe pertence. A rigor, ideias e propostas não devem estar restritas à esfera de competências funcionais. A realidade é impositiva, e nos promete exigir muito mais que isso.

Referências:

1 https://waltersorrentino.com.br/2016/06/21/a-sociologia-do-desgosto-com-o-brasil/

2 http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/medici/aula-inaugural-na-escola-superior-de-guerra/view

3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperinflação_na_República_de_Weimar

4 https://voxeu.org/article/macroeconomics-germany-forgotten-lesson-hjalmar-schacht

5 http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis

6 https://www.idace.ce.gov.br/2020/05/13/estudo-mostra-o-mapa-da-desigualdade-da-distribuicao-de-terras-no-brasil/

7 https://www.portosenavios.com.br/noticias/ind-naval-e-offshore/thyssenkrupp-marine-systems-adquire-estaleiro-oceana-no-brasil

8 https://www.moneytimes.com.br/thyssenkrupp-negocia-ajuda-de-us-59-bi-para-unidade-de-aco/

9 https://br.sputniknews.com/defesa/2020082515989632-exercito-2020-brasil-leva-delegacao-de-alto-nivel-para-promover-seus-produtos-de-defesa-na-russia/

Por Bruno Gomes – Auditor Fiscal da Receita Estadual de SC