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Por , advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

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Por ato dos presidentes do Conselho Nacional e Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), foi instituída a comissão de juristas com a incumbência de apresentar proposições legislativas para uma reformulação do processo administrativo e tributário, modernizando o sistema e dando-lhe uma regulação unificada em todo o território nacional.

Nas palavras de Luiz Fux, a medida tem por objetivo o aperfeiçoamento da legislação, visando garantir o direito constitucional da duração razoável do processo, evitando, inclusive, a judicialização das questões tributárias.

Na verdade, os objetivos traçados pelo presidente do STF são genéricos, superficiais e não atendem às expectativas da comunidade jurídica que transita nesse campo de atuação, em especial, no processo administrativo tributário (PAT), que será o foco desta reflexão. A abrangência da reforma deve transcender aos objetivos mencionados numa linguagem de discurso de instalação da comissão, que certamente, não tem comprometimento com o detalhamento técnico da reforma.

Atualmente não há uma regulação unificada nacionalmente do contencioso administrativo tributário, cabendo a cada ente tributante editar a sua legislação própria, o que dificulta, por óbvio, o labor nesse contencioso, com reflexos negativos para o contribuinte que se utiliza dessa opção para compor a sua lide tributária [1].

Este seria o primeiro objetivo a ser perseguido pela comissão, instituindo uma espécie de “código processual administrativo tributário”, de abrangência nacional, que estabeleça as regras fundamentais para o contencioso tributário no âmbito administrativo.

Esse é só o primeiro ponto. Há outras questões nebulosas que resultam em inconsistências do sistema que devem ser examinadas pela comissão, aproveitando a oportunidade para promover a reforma com a profundidade necessária, instituindo um processo administrativo tributário imparcial, confiável e célere, dando efetividade ao direito constitucional previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal [2].

Nessa reformulação proposta, espera a comunidade jurídica uma melhor definição da natureza jurídica do processo administrativo tributário, com a consequente definição da competência judicante: ou se constitui apenas num instrumento de revisão do lançamento tributário em sua matéria de fato, com poderes contidos, sem poder questionar qualquer ato normativo, visando robustecer os fundamentos do ato, ou os tribunais administrativos exercem um verdadeiro julgamento, na forma de controle da legalidade do ato fiscal, com poderes de afastar, inclusive, uma norma inconstitucional para o caso concreto, o que não representaria a declaração de inconstitucionalidade de lei, que é prerrogativa do Poder Judiciário.

Uma outra questão de grande relevância reside na composição dos julgadores dos órgãos de julgamento, que hoje observa, quase em todos os colegiados, o critério da paridade, com a participação de representantes do Fisco e dos contribuintes, modelo muito discutível entre os pesquisadores da matéria e que nem sempre tem se demonstrado como a melhor solução. Uma ideia que deve ser considerada é provimento dos cargos de julgador por concurso público específico, com maior independência funcional, mantendo o setor de julgamento distanciado da atividade vinculada à arrecadação e fiscalização. Essa é uma opção pioneira adotada pelo Estado de Pernambuco e que parece funcionar muito bem, lembrando que a paridade não é uma exigência constitucional para o processo administrativo.

Espera-se que a comissão também se posicione sobre a questão da vinculação dos tribunais administrativos tributários e de todo o aparelho fiscalizatório, às orientações do Poder Judiciário decorrentes das decisões em rito de repercussão geral (STF), rito repetitivo (STJ), súmulas e demais jurisprudência consolidada, além é claro, das decisões no âmbito do controle abstrato e concentrado erga omnes, com efeito vinculante por determinação constitucional (ADI, ADC, súmula vinculante…), considerando que nem todos os entes tributantes dispõem de legislação específica para essa orientação, de maneira que podemos observar situações em que as autoridades fiscais promovem lançamentos em inobservância à jurisprudência dos tribunais judiciais superiores, súmulas não vinculantes e mesmo contrariando decisões em rito de repercussão geral, sob o entendimento de que a lei estaria em pleno vigor e não teria sido retirada do sistema pela decisão judicial. Neste ponto destaca-se a iniciativa da União que tratou dessa vinculação do PAT às decisões judiciais formadoras de orientações consolidadas, na Lei nº 10.522/2002, artigo19, iniciativa a ser seguida pelos demais entes tributantes.

A comissão poderá também aproveitar a oportunidade para equacionar a questão da composição dos tribunais administrativos, visando evitar a figura do voto de qualidade, o discutível voto duplo do presidente do órgão para o desempate, como acontecia no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CRF), antes da edição da Lei nº 13.988/20, artigo 28, que inseriu o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002, abolindo esse voto e implantando um sistema, também polêmico, que resolve a lide em favor do contribuinte em caso de empate. Tanto o voto de qualidade duplo como a solução a favor do contribuinte em caso de empate, são alternativas extremadas que não contribuem para o equilíbrio da relação processual administrativa. A solução seria adotar o número ímpar na composição do conselho, e anular o problema do empate na votação.

Num objetivo mais ambicioso poderia a comissão implantar uma forma de continuidade entre o processo administrativo e judicial, de maneira que toda a discussão e fundamentos da decisão administrativa fossem aproveitados na esfera judicial [3], resultando numa enorme economia processual, beneficiando tanto o contribuinte como a Fazenda Pública, o que viria ao encontro do princípio constitucional da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, CF) [4]. Cumpre lembrar que os órgãos de julgamento administrativo estão revestidos de condições técnicas especializadas para o julgamento das lides tributárias, expertise hoje totalmente desprezada ou subutilizada na análise e julgamento na via judicial.

Outro ponto que merece um estudo nesse projeto de reformulação é o contraditório tributário nos municípios de pequeno porte, para os quais não é viável a constituição de um órgão de julgamento próprio para oferecer ao contribuinte o direito à defesa administrativa garantido pela Constituição Federal. Por certo, essas Fazendas Públicas municipais estão em dívida com os contribuintes com relação a esse direito. É preciso avançar nesse estudo para viabilizar um sistema de julgamento por um conselho apropriado, de modo que o contribuinte do ISS de pequeno município tenha os mesmos direitos do contraditório oferecidos ao contribuinte de um município de porte maior, capaz de manter um órgão de julgamento próprio.

A apreciação e julgamento de uma impugnação tributária pelo secretário da Fazenda Pública do município não atende aos desígnios constitucionais. Talvez se pudesse evoluir para a ideia de colegiado coletivo, em que diversos municípios se reunissem para formar um único conselho de julgamento, ou aproveitar a estrutura dos tribunais administrativos estaduais para o julgamento das lides tributárias municipais. Reconhece-se que a rearranjo jurídico será de certa profundidade, mas nada justifica a quebra do direito dos contribuintes que não têm acesso a um contraditório administrativo por residir em município que não oferece um órgão estruturado para o julgamento das contendas tributárias.

Eis algumas ideias sugeridas para reflexão. Não prolongaremos a lista de proposições por respeito à limitação de espaço deste artigo. O que se espera é que a reformulação sugerida não seja de forma superficial, de modo a criar apenas mais uma norma sem as alterações necessárias para a modernização do sistema em sintonia com os nossos tempos.

Por fim, o tema deve atrair uma atenção especial, considerando a importância do contencioso tributário no cenário brasileiro. Segundo dados divulgados no relatório Contencioso Tributário brasileiro, do Núcleo de Tributação do Insper, as disputas administrativas e judiciais tributárias entre o Estado e contribuinte alcançaram a marca de R$ 5,4 trilhões em 2019, o equivalente a 75% do PIB brasileiro.

[1] O processo administrativo fiscal da União é regulado pelo Decreto nº 70.235/72.

[2] “Artigo 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

[3] James Marins, em seu livro Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial), Dialética, p, 25, expressa a ideia do aproveitamento do processo administrativo no campo judicial.

[4] “Art. 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Via Conjur