Debate em outras nações envolve metas mais flexíveis e de longo prazo, revisão constante dos gastos e parâmetros fora da Constituição

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, promete apresentar ao Congresso ainda neste primeiro semestre uma proposta para a criação de um novo arcabouço fiscal para substituir o atual teto de gastos, a regra que limita o crescimento das despesas à inflação. Mas não é só Brasil que discute um novo conjunto de políticas fiscais para garantir a saúde das contas públicas.

O tema, que mexe tanto com o mercado financeiro, está em discussão em vários países após os gastos extraordinários da pandemia. As principais alternativas passam por modelos mais flexíveis, com metas de longo prazo e avaliação permanente dos gastos do governo.

A União Europeia tem estudos avançados sobre qual o melhor arcabouço para manter a dívida pública sob controle e dar previsibilidade às contas. Os debates caminham para metas qualitativas de dívida ou gasto, sem impor um número específico a ser alcançado.

A ideia é ter como objetivo a estabilização ou redução da trajetória do endividamento em prazos mais longos, podendo ser adotado o período do mandato presidencial como referência em vez de um único ano.

Segundo a economista Monica de Bolle, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics, há consenso de que a política monetária, coordenada pelo Banco Central com a taxa de juros, não pode ficar dissociada da fiscal, a cargo do Executivo, por meio do Orçamento.

— É um momento superinteressante, com debate muito ativo, principalmente sobre a não separação entre política monetária e fiscal, unidas por dívida e juros — diz Monica.

O economista Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em contas públicas, que também acompanha com lupa as discussões sobre modelos de política fiscal no cenário internacional, diz que as bases para um bom sistema, como já comprovado lá fora, incluem a coordenação da política intergovernamental e regras fora da Constituição, regidas por leis ordinárias.

O atual teto de gastos, que foi criado em 2016, está na Carta brasileira. Entre os 34 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) com regras fiscais definidas em lei, só em nove as metas são constitucionais.

Espaço para investimento

Ribeiro aponta a importância de criar um padrão de governança que deixe espaço orçamentário para o investimento público. O ideal é ter planos plurianuais. É preciso reservar válvulas de escape para momentos de crise e mecanismos de correção para voltar aos parâmetros anteriores à emergência. E ainda introduzir políticas de revisão de gastos, como os prometidos por Haddad e pela ministra do Planejamento, Simone Tebet, e indicadores de desenvolvimento.

— É isso que a Nova Zelândia faz, e é isso que a Europa está tentando organizar — diz o especialista.

A Nova Zelândia é referência no tema por ter sido um dos primeiros países a construir um arcabouço fiscal, nos anos 1990, que foi a inspiração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no Brasil, na mesma década. Agora avança renovando modelos de gestão orçamentária, ao incorporar indicadores sociais, como a qualidade de vida.

O país da Oceania criou o Orçamento de Bem-Estar. Desde 2020, relatórios de estratégia fiscal precisam explicar como os objetivos de bem-estar da população orientam as decisões orçamentárias do governo.

Segundo Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV, que recentemente escreveu sobre a experiência internacional nessa área, a Nova Zelândia projeta o comportamento da dívida pública no médio e longo prazos. Se há risco de a dívida crescer indefinidamente, monta-se um plano para conter a expansão.

— O sistema dá mais flexibilidade para definir taxa de crescimento do gasto, que pode ser maior se a situação fiscal melhorar. Ou se precisa fazer um esforço maior — explica Pires, acrescentando que o objetivo é ter sustentabilidade no longo prazo e estabelecer planejamento de médio prazo, num plano plurianual. — Assim é possível ancorar as expectativas fiscais, atuando de maneira a diminuir o risco fiscal. Conjuga a sua meta fiscal com a âncora de longo prazo.

Monica lembra que a LRF já dispõe de dispositivos que vão nessa direção:

— Nossa Lei de Responsabilidade Fiscal estaria compatível com essa ideia: uma trajetória definida do que se gostaria para dívida, mas não um limite para o endividamento. O ponto não é ter um limite, mas uma trajetória em que a dívida cai. Quão rápida será essa queda? Tem que articular com desenvolvimento do país. Não é meta quantitativa. Já está tudo na LRF. É possível desenhar um arcabouço fiscal (no Brasil) compatível com as práticas mais modernas (no mundo).

A consultora econômica Zeina Latif observa que há três tendências já testadas lá fora sobre o modelo a ser adotado. Não pode ser complexo nem ter muitas variáveis que possam conflitar entre si ou ser de difícil execução. E é preciso ter monitoramento da sociedade:

— Um ponto é ter o mínimo de flexibilidade, principalmente no Brasil, que tem ciclos econômicos acidentados.

Para Ribeiro, o Brasil, que sempre seguiu a experiência internacional na área fiscal, como a LRF, fugiu do padrão ao criar o teto. Ele explica que as regras fiscais na União Europeia, que previam déficit nominal (diferença entre receitas e despesas públicas) de até 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e dívida contida em 60% do PIB, foram sendo adaptadas depois da crise financeira global de 2008 e 2009, que foi seguida pela crise da dívida soberana de países do bloco.

Com a pandemia, os parâmetros foram suspensos até o fim deste ano, e novo arcabouço vem sendo desenhado.

A pandemia, que exigiu forte ação dos governos para sustentar a população e combater o coronavírus, está provocando mudanças no desenho dessas políticas fiscais, o que deve resultar em uma nova geração de regras orçamentárias, diz o especialista:

— As regras ficaram muito complexas, o que fez a maioria dos países não cumprir.

Mudanças climáticas

Na revisão de gastos, o modelo mais avançado aponta para entidades autônomas, nos moldes da Instituição Fiscal Independente (IFI), criada pelo Senado, só que com uma estrutura bem mais robusta. Seriam avaliações de dois em dois anos sobre a qualidade dos gastos.

Se o impacto esperado não for alcançado, a despesa pode ser revista. É como funciona no Reino Unido, onde esse tipo de política fiscal está bem consolidado, afirma Daniel Couri, diretor executivo da IFI, que começa este ano a estudar as alternativas presentes no debate europeu e a nossa experiência com o teto:

— A experiência internacional é bem-sucedida, pode contribuir para melhoria da qualidade do gasto. É almejada há bastante tempo.

Segundo ele, é um momento de transição na geração de regras fiscais:

— Há o desafio de trazer questões de gênero, de mudança climática, como isso vai impactar o Orçamento, além do envelhecimento da população, que terá repercussão nas despesas de aposentadoria e saúde.

Fonte: O Globo – Via Fenafisco